quarta-feira, 30 de setembro de 2015

ESPECIAL - O fascínio de São Francisco de Assis.


Francisco encanta

Por Frei Hipólito Martendal

1. São Francisco encanta muita gente. Em artigos, referi-me algumas vezes à atração, ao fascínio que São Francisco exerce sobre pessoas de diversas religiões e até mesmo sem religião. Lembrava que o título de “A Personalidade do Milênio”, conferido pelos leitores do “New York Times”, não era bem uma homenagem de católicos fervorosos devotos do Poverello de Assis. Boa parte dos leitores é constituída de protestantes. Outros são católicos mais ou menos frios. Existem leitores materialistas e agnósticos (que em nada creem). Por que, então, votar em São Francisco, um modelo tão pouco moderno, tão antimaterialista e tão católico?

2. São Francisco encarnou a essência do cristianismo. Aí está a resposta. São Francisco foi um dos raros seres humanos a compreender e a viver profundamente o cristianismo tal qual foi imaginado e vivido por Jesus. Isso significa que o Cristianismo em sua essência é belo e pode exercer poderosa influência sobre o ser humano. O problema está em que raras são as pessoas capazes de viver bem a alma do Cristianismo. Por isso, nossa luz, que devia ser um farol, transforma-se em uma velinha bruxuleante, como aquelas ridículas “velas-de-sete-dias” que toda hora se apagam e, quando acesas, iluminam quase nada.

3. O cristianismo em sua essência é humano. Uma das coisas que sempre me atraíram para o Cristianismo foi minha convicção de que Cristianismo e Humanismo têm muito em comum. Existe, em nossa cultura, forte tendência a apresentar o ser humano, a humanidade, a materialidade de um lado e Deus, o espírito, Jesus e o Cristianismo do outro, como dois mundos de difícil conciliação e entendimento. Para alguém se tornar cristão parece que é necessário renunciar à sua própria natureza e violentar a todas as suas tendências mais profundas. É mais ou menos como se Deus tivesse criado o ser humano e este tivesse fugido do controle e das intenções do Criador. Um filósofo, não me recordo agora quem, afirmou que o ser humano é um projeto que deu errado.

Mais cedo ou mais tarde precisamos fazer uma profunda revisão sobre a influência do maniqueísmo em nosso pensamento cristão. É necessário repensar toda a doutrina tradicional sobre o pecado original. Tal qual ela é entendida tem como conseqüência aceitar a idéia de que Deus foi um Criador inepto, incompetente, um aprendiz de feiticeiro desastrado. E o ser humano, como seu feitiço, teria se voltado contra Ele.

Claro que nós, humanos, podemos nos voltar contra Deus. Mas isso acontece não por inépcia divina, mas como fruto da sabedoria divina, por ter-nos criados livres. Deus, melhor do que ninguém, sabe que nenhuma adesão, nenhum amor, sem liberdade tem sentido. Então, ou Ele, Deus, criaria o homem livre, ou nunca seria amado por nenhuma de suas criaturas!

4. Convergências entre o humano e o cristão. Estou convencido de que existem muitos elementos em comum entre estas duas realidades. Em primeiro lugar, temos a própria liberdade como um valor essencial para dar sentido a qualquer ato humano autêntico. Deus nos criou para a liberdade. Em toda a história da raça humana, nenhuma virtude, nenhum ideal levou tantas pessoas até o sacrifício da própria vida, como a liberdade. Ela está entre os anseios maiores de todo ser humano autêntico, não escravizado por vícios ou desejos patológicos de posse. Jesus fala da liberdade como uma conquista a ser alcançada através da verdade. Muitos pensadores cristãos veem em algumas cartas de São Paulo uma espécie de “Evangelho da Liberdade”. Uma coisa é certa: a liberdade faz parte da essência do ser humano enquanto criatura de Deus e enquanto cristão.

Outro item importante dos ideais do ser humano simplesmente enquanto gente e enquanto cristão é o ideal do casamento indissolúvel até à morte. Parece estranho, não é? Não vamos falar do que a mídia pondera sobre o assunto. Mas quando recorremos às lendas, aos mitos, aos grandes romances, sempre aparece, em todo amante, em cada amada, o desejo, o sonho, a fantasia de um amor e comunhão eternos! Deus criou o ser humano para que tenha a posse eterna da alegria e da felicidade. Por isso, o sonho de realizações eternas faz parte de nossa natureza.

O exemplo que vou apresentar agora é ainda mais surpreendente. Uma vez li um artigo com o seguinte título: “O Cérebro que é bom não pensa”.

Maravilhado com a leitura, pus-me a pensar nas muitas situações de vida e das atividades humanas nas quais o cérebro pensante precisa ser desligado para conseguir-se um bom desempenho. Por exemplo, tentar dormir pensando na necessidade de dormir, provavelmente, resultará numa bela insônia. Mesmo o cestinha, numa partida de basquete, acerta mais lances de curta e média distâncias em ataques rapidíssimos do que em lances livres parado, a curta distância, sob os olhares de todos e com muito tempo para pensar. Um artista preocupado com seu desempenho comete muito mais falhas do que aquele que se entrega à arte sem nada pensar. Em situações de emergência e grande perigo, o cérebro de um bom motorista realiza cálculos supercomplexos em frações de segundos e comanda movimentos de grande precisão sem nada poder pensar. Sem isso muito mais gente morreria nas estradas e ruas.

Em perfeita sintonia com esses aspectos da natureza humana, muitas das melhores atividades e atitudes cristãs ocorrem sem cálculos, sem raciocínios. São frutos de puras intuições e de impulsos. Às vezes, só ocorrem em estados alterados de consciência, estados meio oníricos, meio inebriados. Sem isso não existe contemplação, a forma mais completa de oração e experiência com Deus. Mas até em situações bem concretas e materiais, como dar uma esmola, socorrer o necessitado, é melhor que as coisas se deem sem cálculos e raciocínios “que sua mão esquerda não saiba o que faz a direita”, diz Jesus.

5. São Francisco é a síntese. Já é lugar-comum dizer-se que Francisco é o mais santo dos homens e o mais humano dos santos. Já afirmei uma vez que São Francisco é uma espécie de milagre vivo. Apesar do maniqueísmo virulento de sua época, que ditava o desprezo de toda a materialidade e da natureza humana, apesar da feroz penitência que se impôs, Francisco perseguiu e viveu a alegria. Apesar de seu horror ao pecado, serviu a toda gente com imensa inocência e ternura. Até o assaltante era chamado de “irmão ladrão”, a quem o guardião do convento devia dar alimento quando batesse à porta.

Francisco deixa-se guiar pelo Altíssimo



Amanhã, 1º de setembro, tem início do Tríduo de São Francisco de Assis, uma preparação para a grande festa franciscana no dia 4 de outubro, quando celebraremos o nosso Pai Seráfico. Até o dia 4 vamos diariamente oferecer reflexões sobre a espiritualidade franciscana.

O segredo e mistério da vida de cada pessoa vai se revelando ao longo do tempo. A pessoa passa de etapa em etapa na dinâmica do crescimento. No desdobrar da história vai aparecendo o mistério de seu ser. As ações colocadas revelam as profundezas de sua vida. O mistério aparece de modo especial quando a pessoa se abre ao Senhor que se lhe manifesta. Não parte ela de um dedutível e de um calculável. Deixa-se guiar pela mão do Senhor.

Sem um plano preestabelecido, em obediência total à voz interior, e depois ao chamado da graça, Francisco foi evoluindo. E com ele a sua obra. De um modo misterioso, não planejado, foi se transformando ao longo de um processo de irresistível fascínio, passando da vida de um jovem que desfruta de uma dourada juventude do século XIII em Assis para uma vida de seguimento do Senhor Jesus, uma vida de penitência, amando de modo muito particular o Crucificado.

Não traçou estratégias. Impulsionado e pressionado pelo alto e a partir de seu interior, procurando e escutando, sofrendo e exultando, foi realizando o que lhe era revelado.

“O Senhor me deu…’ ‘O Altíssimo me revelou’ são expressões que aparecem oito vezes em seu Testamento. Tais afirmações indicam a estrutura íntima de Francisco. Ele é totalmente guiado por Deus nas coisas grandes e pequenas. Tudo o que lhe acontece, tudo o que orienta para a santidade e confere-lhe o selo da perfeição é atuação direta de Deus. Aos seus irmãos não legou outra coisa senão aquilo que o Senhor lhe revelara. Claro que as palavras o Senhor me deu, o Senhor me revelou não podem ser entendidas no sentido teológico da revelação como nas Escrituras. Mas é certo que Francisco tem a certeza de estar sendo guiado pelo Altíssimo.

A biografia de Tomás de Celano e a Legenda dos Três Companheiros resumem claramente a sua vida com a afirmação: “Ninguém a não ser Deus lhe ensinou”. Nesta matéria não teve outro conselheiro a não ser Deus. Transmitiu aos irmãos o que o Senhor lhe havia revelado.

Francisco não agia passivamente. Ele colocava em ação todas as energias de sua vida para cumprir o mandato do Senhor. Realiza com total perfeição uma atitude especificamente cristã: ele escuta. O ato de escutar pode ser concretizado pelo cristão em diferentes graus de intensidade. Pode ir da simples aceitação correta da Palavra de Deus até o ponto que o homem inteiro, até o âmago do seu ser, se dispõe a acolher a boa nova e a põe em prática. Os biógrafos nos mostram como Francisco estava completamente aberto à escuta da voz de Deus. Essa prontidão e essa docilidade que se tornaram tão intrínsecas à suja natureza se concretizaram numa entrega total e numa perfeita obediência.

Esta fusão com a orientação de Deus era tão íntima e adquiriu tão alto grau de uma união mística entre amante a amado que somente poderia se expressar guardando misterioso silêncio…

Francisco compreende em profundidade o Evangelho e também os salmos que ele bem conhece: “O reino dos céus é semelhante a um tesouro escondido no campo e à perola preciosa “(Mt 13,44). Da mesma forma que o feliz descobridor do Evangelho, Francisco esconde o seu tesouro. Ele sabe da misteriosa corrente da graça que vem de Deus à sua alma e é justamente o mais delicado e o mais exposto ao perigo: “Toda a minha obra pertence ao Rei” (Sl 44,2).

Francisco sabe muito bem cuidar do fogo interior com o qual fora agraciado. Sabemos com quanta pertinácia ele soube guardar o segredo de seus estigmas. Escreve a Regra. Dita ou escreve algumas frases de bênçãos; aquilo que ele era, sobre o que nele passa ou havia passado Francisco fala muito pouco, “cauteloso como num enigma”.

“Feliz o homem que sabe guardar os segredos do Senhor seu Deus” (cf. Admoestação 28). A partir deste prisma é que certas Admoestações de Francisco podem ser entendidas.

Tudo isso faz parte daquela “estranheza” que até hoje envolve a figura de Francisco. Seus contemporâneos, da mesma forma que o sultão do Egito, estão profundamente impressionados com ele.

FREI ALMIR GUIMARÃES

domingo, 27 de setembro de 2015

Especial - A mística franciscana no Mês da Bíblia.


Francisco e o estudo acadêmico

Talvez a mais clara e firme intervenção de Francisco sobre os estudos tenha acontecido por ocasião de uma assembléia de cerca de 5 mil frades em Assis (11.6.1223). Entre os frades, muitos deles notáveis por seu saber e grau de instrução, encontrava-se também o cardeal Hugolino, cardeal-referência ou protetor da Ordem e, pouco depois, Papa Gregório IX. Na ocasião, um grupo de frades, ao que tudo indica composto pelos aludidos doutos e por ministros provinciais, dirigiu-se ao cardeal Hugolino, rogando que intercedesse junto a Francisco a fim de que este concordasse em introduzir na Regra de vida elementos das normas de vida de São Bento, de Santo Agostinho, de São Bernardo.

Ouvida a peroração e tomando o cardeal pela mão, Francisco dirigiu-se à multidão de frades reafirmando-lhes redondamente que “o Senhor convidou-me a seguir a vida da humildade e mostrou-me o caminho da simplicidade”; que este mesmo Senhor o queria qual “um novo louco no mundo”. É por meio desta sabedoria que Ele nos quer conduzir, afirmava. Contraponto a supraproclamada simplicidade a possíveis pretensões de doutos, arremata: “Pela vossa ciência e sabedoria, Ele vos confundirá”. Não é difícil imaginar a reação dos ouvintes(..).

Se, por um lado, como acima foi aludido, assinalamos a prevenção de Francisco em relação aos estudos, por outro, é evidente que esta prevenção não se refere ao estudo propriamente dito, mas sim, à postura dos frades em relação ao mesmo. Na verdade, era o modo como os frades poderiam conceber o estudo que estava diretamente ligado à limpidez, seja da escola de Francisco, ou seja, em última instância, da escola de Jesus Cristo. Por outro lado, embora Francisco “não tivesse tido nenhum estudo”, tinha o bom senso do comerciante.

Foi este bom senso que o ajudou a buscar e a reter o essencial. Com efeito, iluminado pela luz eterna e através de assídua leitura, audição e memorização de textos bíblicos, “penetrava os segredos dos mistérios, e, onde ficava fora a ciência dos mestres, entrava seu afeto cheio de amor”. Resumindo esta intuição do essencial, dizia Francisco, pelo final da vida, a um frade, que tinha aprendido tanta coisa na Bíblia que já lhe bastava meditar e recordar: já sei que o pobre Cristo foi crucificado. Desejava um conhecimento profundo, vale dizer, “da medula e não da casca, do conteúdo e não do invólucro, não das muitas coisas, mas daquele bem que é o grande, o maior, o estável”.

Se Francisco, por um lado, exigia dos literatos, juristas, teólogos, pregadores e doutos em geral que, ao ingressar na Ordem, renunciassem à própria ciência para se apresentarem inteiramente disponíveis ao Crucificado, manifestava, por outro, o maior apreço aos mesmos doutos, bem como a outros sábios. E de se notar que em seus Escritos só apareça uma única vez o termo “teólogo”. Mas aparece em sentido positivo: “a todos os teólogos e aos que nos ministram as santíssimas palavras divinas devemos honrar e venerar, como a quem nos ministra espírito e vida”.

Finalmente, um texto expressivo para indicar a atitude de Francisco em relação aos estudos: a brevíssima carta, quase bilhete, dirigida a Santo Antônio: “Eu, Frei Francisco, saúdo a Frei Antônio, meu bispo. Gostaria muito que ensinasses aos irmãos a sagrada teologia, contanto que nesse estudo não extingas o espírito da santa oração e da devoção, segundo está escrito na Regra”.

Aqui, Francisco manifesta sua satisfação, através da expressão: meu bispo dirigida a Santo Antônio e da outra: placet – me apraz, gosto, me alegro, aprovo. O motivo da satisfação de Francisco estaria no seguinte: em Santo Antônio, teria acontecido a admirável confluência do sábio e do teólogo, do santo e do homem de ciência, do ideal e de sua concatenação às exigências práticas da vida ao estudo, portanto. A cláusula condicionante contanto que está em perfeita sintonia com a ambigüidade ou tentação que Francisco percebia poder esconder-se no estudo ou no saber.

Portanto, do ponto de vista da sabedoria ou do “espírito do Senhor” ou da inspiração de Francisco não se trata de uma cláusula restritiva. Ela coloca, sim, o estudo que se deseja em relação à atitude do estudioso, em relação de servo da sabedoria, em outras palavras, em relação à promoção da vida. A mesma ressalva consta na Regra onde, com respeito ao trabalho (embora não especificado, se braçal ou intelectual), se estabelece a mesma ressalva.

Em suma, em relação à ciência e aos estudos, na função acima lembrada, podemos constatar o seguinte: Francisco os apoiou, seja acolhendo pessoas eruditas na fraternidade, seja acolhendo os serviços que estavam em condições de prestar (elaboração da Regra, funções administrativas da Ordem), seja reverenciando as pessoas doutas, seja alegrando-se pela teologia que Santo Antônio se dispôs ministrar em Bologna.

Não se portou, porém, como um incentivador ingênuo. Expressou prevenção e cautela, compreensíveis a partir da percepção que ele tinha da ambigüidade do uso da ciência e dos estudos. Ambigüidade, não pela ciência ou pelo estudo em si mesmos, mas por aqueles que neles estariam envolvidos.

Como lembramos, o próprio Francisco estudou, no sentido de se ter dedicado, de se ter consagrado durante toda vida a uma busca e a uma fruição do Amor. A própria Sagrada Escritura lhe forneceu os meios para conhecer, admirar e amar a ciência sagrada. Pressentia, porém, o risco que o estudo, que a busca do saber – também bíblico ou teológico-pastoral – poderia acobertar: ser utilizado como um umento de domínio, de orgulho, de poder, de distinção de classes, de discriminação social – poder que se torna cego em relação ao ideal de simplicidade, de pobreza, de fraternidade e que, enfim, o menospreza. Isto significa que Francisco, embora tivesse apreço pelo saber e por seus caminhos, relativizava tanto a um a outro em função da sabedoria do viver.

O fato de relativizar a importância de conhecimentos acadêmicos como instrumento essencial para a evangelização significa questionar a fundo algumas tendências eclesiais do tempo que consideravam a ciência como chave e arma para governar a Igreja, iluminar as inteligêcias e lutar contra os hereges. A postura de Francisco é questionadora e iluminadora ao mesmo tempo, tanto no âmbito secular como religioso, tanto para ontem para hoje.

Talvez hoje em dia se tenha até melhores condições para avaliar tanto os motivos de regozijo como de precaução de Francisco devido à magnitude de situações sociais e ecológicas de risco, frutos, não de um uso sábio do saber, mas do abuso do mesmo. Francisco navegava com liberdade nas águas das mediações: “ia direta, espontânea e vitalmente à realidade”.

Portanto, estas alusões parecem demonstrar ou sugerir que Francisco foi um criador de cultura, foi à fonte e trouxe o eternamente novo e antigo. Por isso, descortina horizontes. A Escola Franciscana nele se inspira. Pensa e traduz na cultura de cada tempo e em sistema filosófico-teológico sua inspiração. A ele deve a existência.

Texto do livro “Herança Franciscana”; capítulo “Os franciscanos e a ciência”, de Frei Elói Dionísio Piva, ofm

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Franciscana do dia - 25/09 - Bem-aventurada Lucia de Caltagirone


Virgem religiosa da Terceira Ordem Regular (1360-1400). Leão X concedeu ofício e missa em sua honra no dia 4 de junho de 1514.

Lúcia nasceu em Caltagirone, na Sicília, por volta de 1360. Seus pais a educaram na piedade e ela sabia maravilhosamente corresponder às suas expectativas. Eles eram devotos de São Nicolau de Bari e experimentaram várias vezes sua proteção. Um dia, Lucia subiu a uma figueira para colher frutas e foi pega de surpresa por uma forte tempestade com granizos e relâmpagos. Um raio atingiu a árvore onde Lúcia estava, derrubando-a ao chão quase morta. Em sua mente, ela viu a figura de um santo ancião, São Nicolau de Bari, que a tomou pela mão e a entregou de volta para a família.

Aos 13 anos, ela deixou sua cidade natal, na Sicília, para seguir a uma piedosa terceira franciscana em Salerno. Logo depois que esta guia espiritual morreu, Lúcia entrou para um convento das irmãs de Salerno, que seguiam a Regra franciscana.

Ali se distinguiu pela fiel prática de suas funções e em especial pelo amor à penitência, que havia se comprometido para expiar os pecados da humanidade e, sobretudo, por uma participação mais íntima nos sofrimentos de Cristo. Por algum tempo, ela exerceu o cargo de mestra de noviças. A fama de suas virtudes se espalhou. Muitos recorreram a ela para pedir orações e conselhos. Ela passou muito tempo em oração, meditação e contemplação nas coisas celestiais.

Muitas vezes, a terra nua serviu como uma cama, um pouco de pão e água era o seu sustento. Os nobres vinham a ela, e ela consolava os aflitos, chamava à penitência os pecadores, edificava os piedosos. Deus confirmou com prodígios sua santidade.

Tinha alcançado 40 anos e estava pronta para o céu. Sua vida austera, sofrimentos prolongados e dolorosos minaram sua saúde. A convite do noivo celestial, a sua alma alegre voou para o céu em 1400. Após sua morte, operou muitos prodígios. O culto e a veneração a ela sempre cresceram não só em meio ao povo salernitano, mas nas regiões vizinhas até que o Papa Leão X, em 4 de junho de 1514, em sua homenagem, concedeu ofício e missa.

Fonte: “Santos Franciscanos para cada dia”, Ed. Porziuncola.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Santo Franciscano do dia - 24/09 - São Pacífico de São Severino


Sacerdote da Primeira Ordem (1653-1721). Canonizado por Gregório XVI no dia 26 de maio de 1839.

Pacífico (Apelidado Carlos Antônio), nasceu em São Severino, Marcas, em 1º de março de 1653, filho de Antonio Maria Divini e Maria Angela Bruni, último de 13 filhos. Após a morte de seus pais, foi recebido pelo tio materno Luzizo Bruni, prior da catedral de São Severino das Marcas, culto e bom padre, mas muito austero. Aos 17 anos, ele abraçou a vida religiosa entre os Frades Menores e em 28 de dezembro de 1671 foi admitido à profissão religiosa, em seguida, estudou filosofia e teologia e em 4 de junho de 1678 foi ordenado sacerdote em Fossombrone.

No convento do Crucifixo de Treia trabalhou duro para se preparar para o ministério e ensino. Em 25 de setembro de 1681, foi nomeado pregador e leitor. Durante três anos, ele ensinou filosofia e exerceu a pregação.

Por 10 anos, ele viajou muitas vezes às estradas das verdes Marcas, passando repetidamente por cidades e povoados; pregou em igrejas, praças, santuários, como um incansável difusor da verdade. Suas palavras sacudiram aos fiéis; zeu zelo comoveu os tíbios; sua humildade mortificou os soberbos.  Durante muito tempo ele foi lembrado nas Marcas por sua pregação elevada e persuasiva, inclusive quando as fadigas de sua vida de pregador volante o forçaram a retirar-se ao convento de  Forano, com os joelhos enfermos. Eu tinha 45 anos e viveu até os 68, sempre doente e sempre mais severo com ele mesmo, afligido por engano, e ferido pela calúnia. Em face de acusações injustas, Pacífico não defendeu. Ele manteve a paz silenciosa da mente que laboriosamente conquistado com uma vida de labuta e sofrimento.

Sua saúde piorou cada vez mais. A ferida em sua perna direita, foram adicionados surdez e cegueira progressiva, enquanto que nos últimos anos de sua vida tornou-se impossível para celebrar a missa, ouvir confissões dos fiéis e participar na vida da comunidade. Calvi Alexandre, bispo de San Severino em 11 de junho, 1721 veio visitar e desta vez com espanto o que apostrofaba ouviu: “Excelência, o Paraíso, o Paraíso, você vai primeiro e vou seguir logo depois.” Naquela noite, o bispo ficou doente e morreu em 25 de julho. Pouco Pacífico seguiria mais tarde, aos 68 anos, o 24 de setembro de 1721.

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Padre Pio, o sacerdote estigmatizado.


Francesco Forgione (1887-1968), o Padre Pio de Pietrelcina, era religioso capuchinho que, por receber os sinais da crucificação de Jesus (as feridas nas mãos, nos pés e no tórax), ficou conhecido como “O Estigmatizado de Gargano” (região onde vivia na Itália).

Os estigmas de Pe. Pio começaram no dia 20 de setembro de 1918 e duraram até 23 de setembro de 1968. Segundo o novo santo da Igreja, canonizado este ano pelo Papa São João Paulo II, estava no Coro da Igreja, depois de celebrar a Santa Missa, quando foi surpreendido com os estigmas Seu grito lancinante atravessou a nave da igreja, onde se encontravam alguns de seus confrades em oração. Neste período de calvário de Pe. Pio, vários laudos médicos foram feitos e todos não conseguiram classificar os estigmas dentro da clínica médica.

Acompanhe este relatório do Dr. Romanelli, que o examinou por cinco vezes em quinze meses.

“Padre Pio tem um corte profundo, paralelo às costelas, no quinto espaço intercostal de seu lado esquerdo, medindo de 7 a 8 cm de comprimento. Na lesão das mãos, há grande abundância de sangue arterial. Contudo não se verifica inflamação alguma nas bordas da ferida, mas tornou-se uma zona de grande sensibilidade ao menor toque. A ferida das mãos apresenta-se recoberta por uma membrana de um vermelho escuro, mas também não se verifica inflamação, nem edema. Quando pressionei com meus próprios dedos a palma e o dorso das mãos, tive a impressão de haver um espaço vazio. Pressionando as feridas desta forma (na palma e no dorso da mão), não se pode saber se elas se comunicam, pois uma pressão mais forte causa uma dor lancinante. No entanto, repetindo várias vezes a experiência, pela manhã e à tarde, cheguei à mesma conclusão. A lesão dos pés tem as mesmas características da lesão das mãos, mas devido à pele dos pés ser mais espessa, fica difícil de repetir a experiência das mãos.

Examinei Padre Pio cinco vezes, num período de quinze meses. Embora tenha notado certas modificações nos ferimentos, não me foi possível diagnosticar ou mesmo classificar suas lesões, segundo as cânones da clínica médica.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Especial - A mística franciscana no Mês da Bíblia.



 O adubo que fez crescer a semente da Bíblia

Não é qualquer chão que serve para que uma árvore possa crescer. O canteiro, onde a semente da Bíblia criou raízes e de onde lançou os seus 73 galhos em todos os setores da vida, foi a celebração do povo oprimido, ansioso de se libertar. A maior parte da Bíblia começou a ser decorada para poder ser usada nas celebrações, e foi escrita ou colecionada por sacerdotes e levitas, os responsáveis pela celebração do povo.

Além disso, as romarias e as peregrinações, os santuários com as suas procissões, as festas e as grandes celebrações da aliança, o templo e as casas de oração (sinagogas), os sacrifícios e os ritos, os salmos e os cânticos, a catequese em família e o culto semanal, a oração e a vivência da fé, tudo isso marca a Bíblia, do começo ao fim!

O coração da Bíblia é o culto do povo! Mas não qualquer culto. É o culto ligado à vida do povo, onde este se reunia para ouvir a palavra de Deus e cantar as suas maravilhas; onde ele tomava consciência da opressão em que vivia ou que ele mesmo impunha aos irmãos; onde ele fazia penitência, mudava de mentalidade e renovava o seu compromisso de viver como um povo irmão; onde reabastecia a sua fé e alimentava a sua esperança; onde celebrava as suas vitórias e agradecia a Deus pelo dom da vida.

É também no culto que deve estar o coração da interpretação da Bíblia. Sem este ambiente de fé e de oração e sem esta consciência bem viva da opressão que existe no mundo, não é possível agarrar a raiz de onde brotou a Bíblia, nem é possível descobrir a sua mensagem central.

Trecho da “Bíblia Sagrada”, da Editora Vozes.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Especial - A mística franciscana no Mês da Bíblia.


A mensagem central da Bíblia

Qual é, em poucas palavras, a mensagem central da Bíblia? A resposta não é fácil, pois depende da vivência. Se você gosta de uma pessoa e alguém lhe pergunta: “Qual é, em poucas palavras, a mensagem desta pessoa para você?”, aí não é fácil responder. O resumo da pessoa amada é o seu nome! Basta você ouvir, lembrar ou pronunciar o nome, e este lhe traz à memória tudo o que a pessoa amada significa para você. Não é assim?

Pois bem, o resumo da Bíblia, a sua mensagem central, é o Nome de Deus! O Nome de Deus é Javé, cujo sentido Ele mesmo revelou e explicou ao povo (cf. Ex 3,14). Javé significa Emanuel, isto é, Deus conosco. Deus presente no meio do seu povo para libertá-lo.
Deus quer ser Javé para nós, quer ser presença libertadora no meio de nós! E Ele deu provas bem concretas de que esta é a sua vontade. A primeira prova foi a libertação do Egito.

A última prova está sendo, até hoje, a ressurreição de Jesus, chamado Emanuel (cf. Mt 1,23). Pela ressurreição de Jesus, Deus venceu as forças da morte e abriu para nós o caminho da vida. Por tudo isso é difícil resumir em poucas palavras aquilo que o Nome de Deus evocava na mente, no coração e na memória do povo por Ele libertado.

Só mesmo o povo que vive e celebra a presença libertadora de Deus no seu meio, pode avaliá-lo. Na nossa Bíblia, o Nome Javé foi traduzido por Senhor. É a palavra que mais ocorre na Bíblia. Milhares de vezes! Pois o próprio Deus falou: “Este é o meu Nome para sempre! Sob este Nome quero ser invocado, de geração em geração!” (Ex 3,15).

Faz um bem tão grande você ouvir, lembrar ou pronunciar o nome da pessoa amada. Aquilo ajuda tanto na vida! Dá força e coragem, consola e orienta, corrige e confirma. Um Nome assim não pode ser usado em vão! Seria uma blasfêmia usar o Nome de Deus para justificar a opressão do povo, pois Javé significa Deus libertador!

O Nome Javé é o centro de tudo. Tantas vezes Deus o afirma: “Eu quero ser Javé para vocês, e vocês devem ser o meu povo!” Ser o povo de Javé significa: ser um povo onde não há opressão como no Egito; onde o irmão não explora o irmão; onde reinam a justiça, o direito, a verdade e a lei dos dez mandamentos; onde o amor a Deus é igual ao amor ao próximo.
Esta é a mensagem central da Bíblia; é o apelo que o Nome de Deus faz a todos aqueles que querem pertencer ao seu povo.

Texto da “Bíblia Sagrada”, da Editora Vozes

sábado, 19 de setembro de 2015

Franciscano do dia - 19/09- Bem-aventurado Francisco de Santa Marta



Sacerdote e mártir no Japão, da Primeira Ordem (+1627). Beatificado no dia 7 de julho de 1867 por Pio IX 

Francisco de Santa Marta, martirizado no Japão, era natural de Alvernajo, perto de Toledo, Espanha. Quando jovem, foi admitido na Ordem dos Frades Menores, onde foi admirado por seus confrades por causa de suas virtudes e sua inteligência. O amor de Deus e das almas o levou a oferecer-se como missionário para se dedicar a sua vida à conversão dos infiéis. Em 1623, juntamente com o mexicano franciscano Laurel Bartolomeu chegou ao Japão, onde desenvolveu uma atividade dinâmica apostólica. Ele teve a sorte de encontrar um excelente catequista na prisão e que o acompanhou no martírio: o Bem-aventurado Antônio de São Francisco.

Francisco de Santa Marta pôde realizar um excelente trabalho com o seu catequista, sempre com muito zelo, de valor e de esplêndidas iniciativas, assíduo na assistência aos enfermos. Com outros terceiros bem formados espiritualmente, teve a alegria de batizar muitos pagãos.

Um dia, em Nagasaki, era hóspede do terceiro Gaspar Vaz, juntamente com a Frei Bartolomeu Laurel e alguns terceiros, quando um grupo de guardas invadiram a casa e prenderam os dois frades, seis netos, Gaspar Vaz e sua esposa Maria.

Enquanto estavam sendo levados à prisão, um jovem japonês enfrentou o governador por sua crueldade e ofereceu para morrer com seu mestre. Ele foi recebido na Primeira Ordem e alcançou a graça do martírio: Frei Antônio de São Francisco.

O bem-aventurado Francisco, depois de um sofrimento indescritível, sustentado e iluminado pela fé e pela esperança do céu, foi queimado vivo no dia 16 de agosto de 1627 em Nagasaki, na Santa Colina dos Mártires.

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Especial - A mística franciscana no Mês da Bíblia.


O Evangelho como ponto de partida

Por Frei Atílio Abati

Francisco parte do Evangelho, para reconstruir a vida, e parte da vida, para confrontar-se com o Evangelho. Esta opção e escolha não seria apenas viver o Evangelho, acolhê-lo em sua vida, mas também anunciá-lo ao seus
irmãos.

Novamente, em seu Testamento, Francisco escreve: “E depois que o Senhor me deu irmãos, o Senhor mesmo me revelou que eu devia viver segundo a forma do Santo Evangelho” (Test 4,14).

Francisco tinha clareza quanto à sua missão: o primeiro movimento é acolher a palavra de Deus, embeber-se dela, aprofundá-la na vida, confrontar-se com ela, para ser luz no caminhar e vigor no viver. E depois, levá-la e transmiti-la ao povo de Deus.

E assim, seu dinamismo missionário impele-o a ir ao encontro de todos os homens. Diante do envio e da missão, ele sente a paixão que tem pelo anúncio da Boa Nova.

Ele sente a vocação missionária a que Deus o chamou e sente-se feliz e realizado em ser o bom samaritano a difundir esta mensagem, não só aos leprosos, mas à humanidade toda.

Extraído do livro “Francisco, um encanto de Vida”, Editora Vozes

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

O perfeito amor de São Francisco ao crucificado - Os estigmas de Francisco de Assis e o segredo da suprema felicidade - Mistério e significado.

 
O perfeito amor de São Francisco ao crucificado

Frei João Mannes, OFM

No dia 17 de setembro celebra-se a festa da impressão das chagas de São Francisco de Assis. Os estigmas que Francisco recebeu em 1224, no Monte Alverne, após uma visão do Cristo crucificado em forma de Serafim alado, são sinais visíveis de sua semelhança à humanidade de Cristo, nos seus três modos: na vida, na paixão e na ressurreição.

Francisco encontrou-se pela primeira vez com o Crucificado na pequena Igreja de São Damião. Num certo dia, conduzido pelo Espírito, entrou nessa Igreja e prostrou-se diante da imagem do Cristo crucificado que, movendo de forma inaudita os seus lábios, disse: “Francisco, vai e restaura minha casa que, como vês, está toda destruída” (2Cel 10,5). E, conta-nos Celano, que Francisco sentiu desde então uma inefável mudança em si mesmo, pois são impressos mais profundamente no seu coração, embora ainda não na carne, os estigmas da venerável paixão.

No entanto, foi ao ouvir o Evangelho acerca da missão dos apóstolos (Mt 10, 7-13), que Francisco compreendeu o real significado da voz do Crucificado, e imediatamente exclamou: “É isto que eu quero, é isto que eu procuro, é isto que eu desejo fazer do íntimo do coração” (1Cel 8,22). Assim, sob o toque ou o apelo de uma afeição, começou devotadamente a colocar em prática o que ouvira, isto é, distribuiu aos pobres todos os seus bens materiais, bem como renegou-se a si mesmo para que, exterior e interiormente livre, pudesse ir pelo mundo e anunciar aos homens a paz, a penitência e, enfim, o amor não amado de Deus.

O amor que é Deus realizou-se na sua profundeza, largura e altitude na pessoa de Jesus Cristo. A encarnação, o estábulo, o lava-pés e a Eucaristia são expressões concretas do modo de amar como só o Deus de Jesus Cristo pode e sabe amar. Porém, foi especialmente ao entregar incondicional e gratuitamente a sua vida na Cruz, que o Filho de Deus revelou à humanidade que Deus é essencialmente caridade perfeita.

Francisco, por inspiração divina, abraçou pobre e humildemente a cruz de Jesus e deixou-se impregnar, arrebatar e transformar totalmente pelo espírito de abnegação divina. Isso quer dizer que a imitação de Cristo, por parte de Francisco, não é mera repetição mecânica dos gestos exteriores de Jesus, mas é manifestação de sua profunda sintonia com a experiência originária de Jesus Cristo: o Reino de Deus. Somente quem possui o Espírito do Senhor pode observar “com simplicidade e pureza” a Regra e oTestamento de São Francisco e realizar em si mesmo as santas operações do Senhor.
Na Terceira consideração dos sacrossantos estigmas considera-se que, aproximando-se a festa da Santa Cruz no mês de setembro, o pai Francisco, na hora do alvorecer, se pôs em oração, diante da saída de sua cela, e entre lágrimas orava desta forma: “Ó Senhor meu Jesus Cristo, duas graças te peço que me faças antes que eu morra: a primeira é que em vida eu sinta na alma e no corpo, quanto for possível, aquelas dores que tu, doce Jesus, suportaste na hora da tua acerbíssima paixão; a segunda é que eu sinta no meu coração, quanto for possível, aquele excessivo amor do qual tu, Filho de Deus, estavas inflamado para voluntariamente suportar uma tal paixão por nós pecadores”(I Fioretti)). E, relata Boaventura que, enquanto Francisco rezava, “viu um Serafim que tinha seis asas (cf. Is 6,2) tão inflamadas quão esplêndidas a descer da sublimidade dos céus. E [...] apareceu entre as asas a imagem de um homem crucificado que tinha as mãos em forma de cruz e os pés estendidos e pregados na cruz. [...] Imediatamente começaram a aparecer nas mãos e nos pés dele os sinais dos cravos” (LM 13,3). Assim, Francisco transformara-se todo na semelhança de Cristo crucificado (cf LM 13,5). Pois, de fato, trazia Jesus no coração, na boca, nos ouvidos, nos olhos, nas mãos, nos sentimentos e em todos os demais membros (cf. I Cel 9,115), e conseqüentemente podia exclamar com o apóstolo Paulo: “Eu vivo, mas já não sou eu, é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20).

O Pobre de Assis, no seguimento de Jesus Cristo, perdeu a sua própria vida, mas recuperou-a inteiramente em Deus, de acordo com a palavra do Evangelho: “Quem perder a sua vida por causa de mim vai encontrá-la” (Mt 12,25). Todavia, Francisco não somente reencontrou a si mesmo em Deus, como filho de Deus, mas a todos os seres do universo. O Cânticodas Criaturas, que compôs pouco antes de sua morte corporal, é expressão jubilosa dessa intensa experiência eco-espiritual: “Louvado sejas meu Senhor, com todas as tuas criaturas”.

O pai Francisco tornou-se assim um mestre na sequella Iesu. De imediato despertou o fascínio de muitas pessoas e atraiu muitos discípulos e discípulas, entre as quais, Santa Clara. Clara e suas Irmãs, a exemplo de Francisco, também querem chegar ao cimo da montanha da perfeição do amor. A propósito subscrevemos parte do VII capítulo (Do perfeito amor de Deus) de um interessantíssimo opúsculo que Boaventura escreveu à abadessa das Irmãs, do convento de Assis, sobre A perfeição da vida:

“Não é possível excogitar um meio mais apto e mais fácil para mortificar os vícios, para progredir na graça, para atingir o auge de todas as virtudes do que a caridade. Por isso diz Próspero, no seu livro Sobre a vida Contemplativa: “A caridade é a vida das virtudes e a morte dos vícios”. Como a cera se derrete diante do fogo, assim os vícios perecem diante da caridade. Porque a caridade possui tanto poder que só ela fecha o inferno, só ela abre o céu, só ela dá a esperança da salvação, só ela nos torna dignos do amor de Deus. Tal poder possui a caridade que entre todas as virtudes só ela é chamada propriamente virtude. Quem a possui é rico, tem abundância, é feliz. [...] E diz Santo Agostinho: “Se a virtude conduz a uma vida bem-aventurada, eu quisera afirmar em absoluto que nada é propriamente virtude senão o sumo amor de Deus”. Sendo, por conseguinte, o amor de Deus uma virtude tão elevada, cumpre insistir em alcançá-lo acima de todas as demais virtudes; porém, não um amor qualquer, mas só aquele com que Deus é amado sobre todas as coisas e o próximo por amor de Deus.

O modo de amar a teu Criador ensina-o o teu esposo no evangelho: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma e de todo o teu espírito. Repara bem, caríssima serva de Jesus Cristo, que amor o teu dileto esposo exige de ti. Quer o teu amado que ao seu amor dediques todo o teu coração, toda a tua alma, todo o teu espírito, de sorte que absolutamente ninguém em todo o teu coração, em toda a tua alma, em todo o teu espírito, tenha parte com ele. Que, pois, fará para amares o Senhor teu Deus realmente de todo o coração? Que quer dizer: de todo o coração? Vê como São João Crisóstomo ensina: “Amar a Deus de todo o coração significa não estar o teu coração inclinado a nenhuma outra coisa mais do que ao amor de Deus; não te comprazeres nas coisas desse mundo mais do que em Deus, nem nas honras, nem mesmo nos pais. Se, todavia, o teu coração se ocupar em alguma destas coisas, já não o amas de todo o coração”. Peço-te, serva de Cristo, não te iludas. Fica sabendo que, se amas alguma coisa, e não a amas em Deus e por Deus, já não o amas de todo o coração. Por isso diz Santo Agostinho: “Senhor, menos te ama quem ama alguma coisa contigo”. Se amas alguma coisa que não te faz progredir no amor de Deus, não o amas de todo coração. E se, por amor de alguma coisa, negligencias aquilo que deves a Cristo, já não o amas de todo o coração. Ama, pois, o Senhor teu Deus de todo o coração.

Não somente de todo o coração, mas também de toda a alma devemos amar a Jesus Cristo, nosso Deus e Senhor. Que significa: de toda a alma? Vai dizê-lo Santo Agostinho: “Amar a Deus de toda a alma é amá-lo com toda a vontade, sem restrições”. Amarás, certamente, de toda a alma, se sem contradição e de boa vontade fizeres não o que tu queres, nem o que aconselha o mundo, nem o que te inspira a carne, mas aquilo que reconheceres como sendo a vontade de Deus. Amarás, de fato, a Deus de toda a tua alma quando por amor de Jesus Cristo entregares de boa vontade tua vida à morte, sendo necessário. Se nisto, porém, faltares, já não amas de toda a alma. Ama, pois, ao Senhor teu Deus de toda a tua alma, isto é, faze a tua vontade sempre em conformidade com a vontade divina.
Entretanto, não só de todo o coração, não só de toda a alma, deves amar o teu esposo, Jesus Cristo. Ama-o também de todo o teu espírito. Que quer dizer: de todo o teu espírito? Di-lo novamente Santo Agostinho: “Amar a Deus de todo o espírito, é amá-lo com toda a memória, sem esquecimento”. (in: ObrasEscolhidas. Porto Alegre: EST, 1983, p. 433-435).


Os estigmas de Francisco de Assis e o segredo da suprema felicidade

Dom Laurence Freeman, OSB (*)

Queridos amigos:
Sessenta e cinco meditantes de vários continentes se reuniram recentemente em um Retiro silencioso de uma semana, no Monte Alverne, o lugar de peregrinação na Toscana, onde São Francisco de Assis (1182-1226) recebeu os estigmas em 1224, dois anos antes de sua morte. Passamos a noite do primeiro dia de viagem ao pé do monte e logo cedo, no ar fresco e ensolarado da manhã seguinte, fizemos vagarosamente e em silêncio o caminho da forte subida que leva ao santuário.
Paramos na Capela dos Pássaros para escutar o sublime canto que recebeu Francisco e seus três companheiros quando ali chegaram e ele se viu cercado alegremente pelos pássaros, confirmando que tinha vindo ao lugar certo. Francisco fora ao monte para um jejum de quarenta dias em preparação à chegada da Irmã Morte cuja rápida aproximação pressentia.

Depois de nos alojarmos na simples Casa Franciscana de Retiros, e começarmos a sentir o ambiente desse lugar intenso e sagrado, concordamos em nos fazer uma pergunta preliminar simples. Por que tínhamos ido para lá? Como a maioria das perguntas simples, ela foi uma chave que abriu muitas portas. Afinal, no silêncio em que estávamos então entrando, a pergunta levou a outras perguntas igualmente básicas, relacionadas à consciência e à vida espiritual, que nos levaram ao limite do pensamento e, assim, à luz de Deus dentro de nós: Quem sou eu? Quem é Deus?
A história da experiência de oração de Francisco no lugar sagrado do Monte Alverne nos enriqueceu, desafiou e guiou dia após dia. Ficamos sabendo como ele se aprofundou cada vez mais na solidão, durante sua estadia ali, alternadamente fustigado por seus demônios interiores e consolado por visitas angélicas. Nisto, ele perseverou até que chegou à experiência que culminou na união com a humanidade de Cristo, o que tornou esse lugar tão sagrado, não somente para seus seguidores franciscanos, mas também de grande significado para toda a tradição cristã de oração.
Na noite de 14 de setembro, Festa da Santa Cruz, seu fiel amigo e companheiro, Frei Leão, desobedeceu às instruções de Francisco e penetrou na solidão de sua reclusão para ver como ele estava. À luz do luar, Frei Leão viu Francisco de joelhos em oração, repetindo com todo o fervor as perguntas que se encontram no centro de toda oração cristã: “Quem és tu, meu doce Deus… Quem sou eu, teu servo inútil?”“E somente estas palavras repetiu e nada mais disse” – conta-nos São Boaventura, seu biógrafo. Frei Leão viu o fogo que descia sobre a cabeça de Francisco, envolvendo-o por muito tempo.

Quando Francisco afinal o notou, Frei Leão perguntou o que significava tudo aquilo. Francisco respondeu que ele tinha recebido duas luzes para a sua alma; o conhecimento e a compreensão de si mesmo, e o conhecimento e a compreensão de Deus. Nesta oração no fogo, Deus lhe pediu três dádivas e ele buscou em sua pobreza até encontrar uma bola de ouro que ofereceu três vezes: a doação dos seus votos.

Após dizer a Frei Leão que não o espionasse mais, Francisco dirigiu-se à Bíblia para saber a que estaria sendo preparado – e em cada consulta ele foi encaminhado para a Paixão de Jesus Cristo. Retornou então à oração solitária, “tendo muita consolação na contemplação”. Sentiu-se depois impelido a pedir não somente a graça de sentir a dor de Cristo, mas também o amor que possibilitou a Cristo suportá-la por nós. Começou a contemplar a Paixão com profunda devoção até que “se transformou completamente em Jesus por meio do amor e da compaixão”.

Na manhã seguinte, ele viu um serafim aproximar-se na forma de Jesus Crucificado. Ele se sentiu repleto, simultaneamente, de medo e alegria, deslumbramento e tristeza. E foi-lhe dada a percepção de que sua transformação em Cristo não aconteceria por sofrimento físico, mas “por uma elevação da mente” – a transformação da consciência em amor. Entretanto, o sinal desta transformação seria a marca permanente das cinco chagas divinas de Cristo no corpo de Francisco. Pouco depois, Francisco deixou o Monte Alverne e retornou à cidade de Assis, para morrer “com a chama do amor divino em seu coração e as marcas da Paixão em sua carne”. Com humildade, perguntou a seus irmãos se deveria tornar pública a informação sobre seus estigmas, e convenceu-se de que deveria quando lhe disseram que a experiência deveria ter um significado não somente para ele, mas também para os outros.

MISTÉRIO E SIGNIFICADO

Houve diversas reações entre nós ao ouvir esta história. O elemento de ligação de todas foi um reverente senso de mistério – a experiência que não pode ser aplicada adequadamente pela razão – e a necessidade de expressar reverência pela busca de um significado para a experiência. As experiências mais profundas das histórias de nossas vidas também merecem a mesma reverência e impelem à busca de significados. E o significado não aparece com rapidez ou facilmente.
Não dar o tempo ou a quietude de atenção necessários, para tornar plenamente consciente o que nos acontece, é uma característica de nossa época, veloz e impaciente. Tempo e atenção são necessários se não quisermos tratar a vida superficialmente.

A superficialidade desperdiça o precioso sentido do sagrado que dá profundidade e propósito a nossos encontros com a alegria e o sofrimento intensos, freqüentemente cheios de perplexidade. Mistérios como esses são dons valiosos, realidades que exigem tempo.
Quanto à experiência de Francisco, precisávamos, em primeiro lugar, perguntar: o que significava e para quem? Para o próprio Francisco, para a Igreja, para nós, hoje? Talvez o significado para Francisco fosse de foro íntimo e inacessível, só dele mesmo – este é o significado solitário e único de toda experiência única. Podemos supor, pelo que sabemos de Francisco, que os seus estigmas simbolizam um alto grau de realização da sua união com a pessoa do Cristo Crucificado e Ressuscitado, a quem amou com tanta persistência e paixão.
O desejo que consome os místicos – e amantes – é sempre o de despojar-se de sua identidade egocêntrica e unir-se de forma permanente com o Bem- Amado, em uma maneira de ser em que o “eu” e o ‘tu”, apesar de não obliterados, deixam de ser entidades fixas. “Não sou mais eu quem vive; mas é o Cristo quem vive em mim”. O abismo da separação (das individualidades) se fecha quando transcendemos o ego. “Uma consumação a ser desejada devotamente”, mas algo que, ao mesmo tempo, causa horror ao ego e doloroso pressentimento. À diferença de Francisco, a maioria de nós recua, sistematicamente, no exato momento em que a satisfação do nosso desejo de plena união nos é oferecido.

A vida de Francisco foi uma ascensão, freqüentemente uma peregrinação vertiginosa em direção a esta união de sua humanidade com a humanidade de Cristo. Ao contrário dos seus seguidores, que o veneravam como santo, Francisco via a história de sua própria vida repleta de inúmeros fracassos e retrocessos, provocados por sua natureza pecaminosa. Como acontece com a maioria dos fundadores, ele morreu com um sentimento de fracasso.
Ao mesmo tempo, ele também sentia e manifestava uma alegria cada vez mais intensa, o que seria uma prova, em nível mais profundo de percepção, de que sua evolução era constante. A coexistência, a mistura de alegria e sofrimento, dor e paz, amor e solidão, tornaram-se, com crescente clareza, o tema unificador – se não, mesmo, a experiência – do nosso Retiro. Até o clima variável durante a semana foi expressão disso, ao passarmos de dias fechados com nevoeiro úmido e frio para outros dias de céu claro, com sol quente e panoramas abertos.
Independentemente do que possa ter significado a mais para Francisco, por causa da extinção, pelo amor, da sua identidade separada, os estigmas selaram também sua vocação e sua missão na Igreja. A experiência de Francisco influenciou decisivamente o curso da Espiritualidade cristã. Sua união com Cristo, ocorrida no Monte Alverne, iniciou uma nova era e uma mudança na consciência cristã. Ficou a cargo de São Boaventura – pois Francisco não era teólogo – formular a devoção ao Jesus histórico, especialmente a que focalizou a Cruz – que abriu uma nova dimensão no pensamento e no sentimento cristãos.

E o que podem os estigmas significar para nós? É o que nos perguntávamos, enquanto, dia após dia, a intensidade peculiar do Monte Alverne nos convidava a questionar mais seriamente quem era Deus e quem éramos nós. Lembrávamos o que Francisco viu na grande claridade de sua experiência incandescente: que o conhecimento de Deus e o conhecimento de si mesmo são inseparáveis e que, uma vez que se fundem, somos transformados para sempre. Indagávamos o que seria “a bola dourada” em nosso estilo de vida, com a qual faríamos a dádiva de nós mesmos a Deus.
Vimos que se Francisco podia sentir simultaneamente as emoções conflitantes de medo, alegria, admiração e sofrimento, nós também deveríamos estar dispostos a parar de nos agarrar a um único estado mental dominante, com o qual ficamos habitualmente obcecados – não deveríamos nos identificar com nossa ira, medo ou desejo, por exemplo. E que precisamos aprender a nos desapegar de todos os nossos sentimentos para estarmos abertos ao mistério de Deus em toda a extensão da nossa humanidade.

Vimos como, em sua simplicidade, Francisco ilustrou a dimensão trágica da vida em que alegria e sofrimento são parceiros inseparáveis. Questionamos a fixação da nossa cultura na busca da felicidade, que nega a nossa inescapável condição de mortalidade e nossas imperfeições essenciais. No sinal misterioso da união de Francisco com Cristo, pudemos sentir como o desejo de união, que é a mais profunda de todas as nossas aspirações, só pode acontecer com pureza de coração e intensa entrega. A união acontece quando ela é o nosso único desejo: quando o drama habitual de desejos conflitantes, que nos fazem repetir padrões antigos de fracassos, tiver sido radicalmente simplificado.
Quando lemos que Francisco, ao deixar o Monte Alverne montado em uma mula, por causa da dor que sentia em seus ferimentos, começou – na última fase de sua vida – a curar os sofrimentos dos outros, compreendemos que nenhuma experiência identificável como tal pode ser considerada definitiva. Estamos sempre seguindo adiante. “Os anjos ficam parados – diz um ditado judeu – o Santo está sempre em movimento”.

Finalmente, indagando quem seria realmente Francisco, vimos como ele se tornou um amigo da humanidade, um dos grandes boddhisatvas cristãos. A escolha de Assis pelo Papa João Paulo II como local para o encontro histórico da oração ecumênica em 1988, reunindo dirigentes religiosos de todas as crenças, foi inspirada pela amizade universal a que se dedicou Francisco. Os santos, assim nos parece, não são somente para ser venerados como paradigmas de excelência, mas devemos nos aproximar deles como amigos para a jornada espiritual, com a humildade de Cristo, superando o paradoxo de uma intimidade universal que parece impossível sem eles.

FERIDOS QUE CURAM

Depois de receber os estigmas de Cristo, Francisco ficou marcado como a expressão viva do arquétipo de santo, sábio ou xamã. Mas no sentido cristão, e de forma ainda mais expressiva, ele personifica o ferido que cura. Numa ocasião em que Frei Rufino tocou Francisco e colocou com curiosidade sua mão na chaga aberta do lado, Francisco se encolheu de dor.
Como ele, nós também às vezes invadimos as feridas íntimas de outros – a mídia atual ganha muito com isto. Nós sabemos como os nossos ferimentos mais profundos podem gritar de dor quando um pensamento, uma palavra ou ação desatenciosa toca neles.

O toque é um tema dominante na vida espiritual de Francisco. Ele tem um contato alegre com o mundo material e suas múltiplas e esplendorosas belezas. Ele é constantemente mostrado tocando ou sendo tocado por criaturas, humanas e outras. Muitos dos que o tocaram no fim da vida sentiram-se curados simplesmente por fazê-lo. Sua grande singularidade demonstra a espécie superior de sanidade que nos advém quando somos (mesmo que só um pouco) tocados por Deus. As chagas de Francisco foram toques de Deus que o mudaram de forma irreversível.
Somos feridos mais profunda e dolorosamente, não por acidentes que acontecem – não importa quão trágicos sejam – mas pelo amor. Como todos aqueles que sofreram sabem, todo sofrimento é suportável – ou não suportável – proporcionalmente ao grau de amor que conseguimos manter vivo. Entretanto, o próprio amor é o maior ferimento que a humanidade é capaz de infligir. Existe o doce ferimento do amor, que pode transformar a personalidade e nossos poderes de percepção. Pode elevar-nos de um mundo preto-e-branco, unidimensionado, para um universo multicolorido não sonhado e de perspectivas cambiantes.

E existe o ferimento amargo, quando o amor é retirado, quando sua expressão emocional murcha, quando é inexistente ou traído. Ou quando morre a pessoa que amamos. Como nos estava ensinando o tema emergente do Retiro, abrir-se ao doce ferimento (do amor) como Francisco se abriu às “alegrias da contemplação”, também nos expõe ao lado cortante da espada, à realidade do amor, ao ferimento amargo e à dor da perda irremediável.
O ferimento é uma experiência rara de permanência. A maioria das coisas que acontece não dura. Necessitamos, portanto, distinguir entre ferimentos e golpes, as frustrações e os desapontamentos que acontecem na vida e que podem ser amargamente dolorosas, mas que, com o tempo, podem até desaparecer da memória: o fracasso de um exame, perdas financeiras, desencontros. De tudo isso nós nos recuperamos. Entretanto, os ferimentos nos marcam para sempre e alteram a química mais profunda de nossa percepção e o próprio funcionamento de nossa identidade. Um ferimento significa que nada será mais como antes. O tempo conserta os golpes, mas não cura ferimentos profundos. Somente a eternidade, a imersão do momento presente nas águas da presença de Deus, pode curar um ferimento. Assim como o ferimento da morte de Cristo só pode ser curado pela Ressurreição, quando Ele mergulhou nas escuras profundezas de sua divindade.


OS FERIMENTOS AO PASSAR DO TEMPO

Claro que os sentimentos e os significados associados aos ferimentos vão mudando com o tempo. Todo significado surge, dentro do seu contexto, na leitura do que estamos analisando. Não podemos ver o significado da experiência de Francisco no Monte Alverne fora do contexto da sua própria vida e da sua cultura histórica. O significado dos nossos próprios ferimentos – que, com freqüência, no princípio nos parecem horrorosamente sem significado – começa a surgir à medida que os vamos vivendo em relação com outros eventos e esquemas de nossa vida.
Isto quando o sofrimento nos permite continuar conscientes o suficiente para proceder assim. Mas ferimentos nunca podem ser eliminados, assim como um fim ou um princípio jamais podem ser repetidos. São parte da nossa história e, nesta história, não obstante pareça um átomo insignificante no universo, é uma partícula única e indispensável na constituição do cosmos. Nossos ferimentos estão, portanto, entre as forças mais sagradas que dão forma à nossa existência e fazem o próprio mundo ser como é.

É importante evitar o sentimentalismo ou o excesso de otimismo com referência ao nosso sofrimento, porque ambos podem inibir a esperança. Ser ferido é perigoso. Pode aleijar ou até destruir a personalidade. Pode nos empurrar da borda para dentro do desespero ou nos entrincheirar em um isolamento medroso e cínico, além de amargurar involuntariamente o nosso espírito. Até pior – e as histórias de famílias e nações estão repletas de exemplos: os ferimentos podem nos transformar em inimigos da humanidade, demônios cheios de ódio contra Deus, cruéis e selvagens para com os outros.

“O ferimento aceito dentro da maneira de ser do mundo” – como nos diz São Paulo – leva-nos à morte. Nesse estado de morte somos esvaziados de toda a compaixão, coma os campos nazistas de extermínio – dirigidos por pessoas comuns não tão diferentes de nós mesmos – não nos deixam esquecer. E podemos nos tornar especialmente vingativos com os que são mais fracos do que nós e estão mais feridos. Podemos nos transformar em feridos que ferem. Ou feridos que curam. Como Francisco e seu modelo, Cristo.
Como aconteceu com Queirão no mito grego. Filho do deus Cronos e da ninfa terrestre Fílira, Queirão teve a infelicidade de nascer como um centauro, meio humano – a parte superior do seu corpo – e meio cavalo. Quando sua mãe o viu, ao nascer, ficou tão revoltada que conseguiu ser transformada em um limoeiro para que não pudesse amamentá-lo. Assim, seu primeiro ferimento foi a rejeição. Mas Apolo o adotou – pelo menos em sua parte superior – e lhe deu treinamento para aperfeiçoar-se em todas as artes e no conhecimento. Queirão transformou-se em um grande mestre e mentor para muitos dos maiores heróis gregos, incluindo o próprio Héracles. Um dia, em uma festa com centauros que se desgovernaram, Héracles teve que lançar uma flecha envenenada para acabar com a desordem. Acidentalmente, a flecha atingiu Queirão. Sendo filho de um deus – logo, imortal – a flecha não poderia matá-lo, mas deixou-o em agonia permanente e amargurada.
Sua vida mudou. Viu-se forçado a retirar-se para uma montanha para cuidar de sua chaga incurável. Desta maneira, Queirão transformou-se em perito nas artes da cura e dos poderes medicinais da natureza. Com a aproximação dos que sofriam e vinham procurá-lo, nele também cresceu a compaixão por eles. Não eram mais os famosos e poderosos que vinham até ele, mas os pobres e esquecidos. A todos, Queirão curava com o poder do seu recém-desenvolvido conhecimento, e eles partiam agradecidos, mas se perguntavam por que ele, que curava os outros, não podia curar a si próprio.
Héracles (o que feriu curando), durante outra de suas aventuras, encontrou uma saída para Queirão. Conseguiu que Zeus concordasse em libertar Prometeu do seu tormento se fosse encontrado um imortal que se dispusesse a dispensar sua imortalidade e a morrer. Queirão aceitou a proposta e, ao aceitar a mortalidade e morrer, disse sim para o que realmente era. Ele assim iniciou um novo tipo de heroísmo, deixando de lado suas tentativas inúteis de curar seus próprios ferimentos, de ser o seu próprio redentor. A morte não tinha grande atração ou glória, mas continha uma verdade sombria e profunda que não poderia ser expressa nem por todos os poderes de Apolo.
Ele morreu e, como todos os mortais, desceu ao mundo interior. Atravessou o Estige, fronteira entre a consciência dos vivos e dos mortos; pagou a sua moeda ao barqueiro sem rosto, atravessou os campos cinzentos de Asfodel – onde os mortos à espera do julgamento piavam como morcegos – e, diante dos que reinavam no Hades, aguardou o seu julgamento. O mito nos conta que ele permaneceu ali por nove dias obscuros. Zeus então o salvou do Hades e o alçou acima da terra para fazê-lo para sempre uma constelação no céu: um ensinamento escrito no céu para todos lerem.
E onde fordes, proclamai que o Reino dos Céus
está próximo. Curai os doentes, ressuscitai os
mortos, limpai os leprosos, expulsai os demônios.
De graça recebestes, de graça dai (Mt 10, 7-8)
Jesus, sempre consciente da sua morte iminente, e ferido pela rejeição e pelos mal-entendidos, ficou conhecido entre os seus contemporâneos, sobretudo, como aquele que curava. O convite que faz aos seus seguidores, para imitarem o que fazia quando curava o sofrimento humano, confere dignidade aos que estão feridos. Enquanto pensarmos que são os sadios que curam, estaremos subscrevendo o culto do poder. Nossa percepção da realidade ficará distorcida pela busca obsessiva da felicidade e pela fuga do sofrimento, empreendidas pelo ego.
O segredo do Monte Alverne não é, afinal, tão esotérico. Ele abre uma visão de suprema felicidade humana – a ventura de conhecermos a nós mesmos e a Deus, no amor de Cristo. Nele podemos também acreditar, porque não foge da realidade do sofrimento – do qual não há como escapar. A sabedoria de Francisco, assim como a sabedoria de Jesus, nos ensinam que a nossa vulnerabilidade ao sofrimento não é um impedimento para a prestação de serviços amorosos aos outros. E mesmo condição para que possamos aliviar o sofrimento do próximo.
Enquanto perseguirmos a nossa própria felicidade como a primeira das prioridades, nós faremos isso, de forma consciente ou não, à custa do bem-estar de outrem. Mas, se aliviarmos a dor do outro, encontraremos a plenitude do ser para a qual fomos criados. Curar – enquanto nós mesmos estamos feridos – não está, no entanto, no campo da experiência do ego.
Aquele que não toma a sua cruz e me segue
não é digno de mim. Aquele que procura a si mesmo
acabará por se perder e quem se esquecer de si mesmo,
por amor de mim, acabará por encontrar-se
(Mt 10,38-39).
Pode-se compreender melhor o significado da experiência de Francisco, no Monte Alverne, no contexto da sua oração, assim como nossa vivência consciente, a partir desses paradoxos do espírito, dependerá da profundidade da nossa oração. Na oração de Francisco, a ênfase não está essencialmente nas visões, revelações e milagres que enchem sua biografia. A meditação logo nos ensina que não precisamos dessas coisas e não devemos procurar tais experiências.
Até para Francisco elas não foram a substância do seu relacionamento com Deus, como o mostra a sua vida em comunidade e a sua insistência no valor supremo da pobreza e da humildade. Mais significativa é a sua contínua perseverança no aprofundamento da oração. Ele retornava freqüentemente a períodos de solidão e aprofundava a sua aceitação de todo o espectro da realidade, o que o tornou tão profundamente sensível à presença e à atividade de Deus em tudo, em toda manifestação da natureza, como o mostra o seu Cântico das Criaturas. “Despertado por todas as coisas para o amor de Deus… nas coisas belas ele encontrava a própria beleza”.
Vistos através deste prisma, o amor de Francisco pela criação e a ênfase de São João da Cruz sobre o desapego a todas as criaturas parecem complementares, em vez de opostos inconciliáveis, como poderia parecer. Vemos desapego também em Francisco, e celebração e louvor em João da Cruz. Onde se vive a plena verdade, os opostos coexistem. Não apenas alegria e sofrimento. Mas também a vida e a morte. Quando o percebemos, sabemos o que a vulnerabilidade de Cristo ao sofrimento proclama: a vida não é negada pela morte, mas consiste no ciclo de morte e renascimento. Este ciclo vai levar, na plenitude dos tempos, ao estado sem morte que Francisco suplicou lhe fosse dado experimentar antes da sua união com Cristo no Monte Alverne:
E como continuasse neste propósito, um anjo
lhe apareceu em grande glória, trazendo
um cálice na mão esquerda e uma flecha
na mão direita. Enquanto Francisco se admirava
com esta visão, o anjo atravessou o cálice
uma vez com sua flecha, e imediatamente Francisco
ouviu uma melodia tão doce que sua alma se encheu
de encantamento – o que fez que ele ficasse
insensível a toda sensação do corpo. Como
posteriormente contou a seus companheiros,
caso o anjo passasse novamente a flecha pelo cálice, tinha dúvidas
se a sua alma não teria deixado seu corpo por causa da doçura intolerável
(Segunda Consideração dos Sagrados Estigmas).
A meditação não procura – nem rejeita – tal experiência. Ela nos leva a profundezas para além do ego em que a experiência de Deus é possível e transcende todo desejo do ser consciente. Não estamos buscando a plenitude mística, mas a união no mistério do amor. O/a meditante precisa tornar-se um ferido que cura ao penetrar fielmente neste mistério de alegria e sofrimento, rejeitando todo escapismo e falsa consolação.
Esta fidelidade remove gradualmente a montanha do egotismo. É um partilhar a vida do Cristo, que é seu contínuo morrer e ressuscitar em nós.
Incessantemente e em toda a parte trazemos em nosso corpo a agonia de Jesus, a fim de que a vida de Jesus seja também manifestada em nosso corpo (2Cor 4,10).
Quando deixamos também o Monte Alverne – para o próximo passo da nossa peregrinação individual – nós o fizemos alimentados pela comunidade que havíamos partilhado e as verdades que experimentamos na companhia uns dos outros. Este me pareceu ser o poder da comunidade que vem à tona com a meditação, e que tantos, hoje, estão ansiosos por sentir, muitas vezes sem o saber. Que a nossa prática diária contínua permita a cada um de nós participar na cura do nosso mundo.

Uma relíquia viva descia da montanha.



Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM

Desde a infância muitos de nós fomos aprendendo a gostar desse Francisco. Francisco das coisas pequenas, simples,  irmão do sol, das estrelas, da água, do leproso e de frei Leão, Francisco, cheio de carinho para com o Menino das Palhas e o Jesus bondoso e pobre que morre na cruz, esse Jesus que é o amor que precisa ser amado.

São Boaventura escreve: “Francisco, servo verdadeiramente fiel e ministro de Cristo, dois anos antes de devolver o espírito ao céu, como tivesse começado num lugar alto, à parte que se chama Monte Alverne e, um jejum quaresmal em honra do Arcanjo São Miguel, inundado mais profusamente pela suavidade da contemplação do alto e abrasado pela chama mais ardente dos desejos celestes, começou a sentir mais copiosamente os dons da ação do alto. Então, enquanto se elevava a Deus pelos seráficos ardores e o afeto se transformava em compassiva ternura para com aquele que por caridade excessiva quis ser crucificado, numa manhã, pela festa da Exaltação da Santa Cruz, rezando na parte lateral do monte, ele viu como que a figura de um Serafim que tinha seis asas tão fúlgidas, tão inflamadas a descer da sublimidade dos céus, o qual chegando com um vôo rapidíssimo num  lugar próximo ao homem de Deus, apareceu não somente alado, mas também crucificado, tendo as mãos e os pés estendidos, e pregados à cruz e as asas de modo tão maravilhoso dispostas de uma e outra parte que elevava duas sobre a cabeça, estendia duas para voar e com as outras duas velava o corpo, envolvendo-o todo (…). Depois de um certo colóquio secreto e familiar, ao desaparecer, a visão inflamou-lhe interiormente o espírito com ardor seráfico e marcou-lhe exteriormente a carne com a imagem do Crucificado, como se ao poder prévio de derreter o fogo seguisse uma impressão do selo” ( Legenda Menor – Os sagrados estigmas, n.1).

Dois anos antes de morrer, Francisco vai ao Monte Alverne. O santo vinha do Oriente, cansado, doente, vendo que, talvez seus irmãos, numerosos, estavam perdendo o ardor dos começos. Francisco, sem amargura, sente vontade de tomar certa distância dos fatos e dos acontecimentos.  O Santo se dava conta que estava no final de sua caminhada. Tinha dores em todo o corpo. Estava tomado por estas febres loucas e enxergava mal. Não podia mais suportar a luminosidade do  Irmão Sol. Era o tempo da festa da Exaltação da Santa Cruz. Quer fazer a quaresma de São Miguel no silêncio,  na meditação, ao lado de seu Frei Leão.  Quer estar mais perto de seu Senhor.

Toda sua vida fora busca de Cristo. Um dia ele teria formulado uma oração no seguinte teor: “Senhor, gostaria de ser digno de receber duas graças de vossa parte: experimentar em meu coração o amor que tiveste para com os homens e sentir a dor de tua acerbíssima paixão”. Esta súplica foi sento atendida pelo Senhor ao longo do tempo da vida de seu servo Francisco.  Durante anos e anos, depois de sua conversão, ele sempre buscar entrar na intimidade do Senhor Jesus na grutas, nos caminhos, contemplando o rosto dos leprosos. Aos poucos esse Francesco foi “tendo os mesmos sentimentos de Cristo Jesus”. Foi se abrasando no amor de Cristo. Cristo é o Vivo que queima e arde. Estamos diante da mística. Do amado que seduz a amada. Francisco e Cristo se tornam uma unidade. Há uma identificação mística. Francisco continua Francisco e Cristo continua Cristo. Nasce no coração do assisiense o desejo de viver também as dores e os sofrimentos de Cristo.

Eloi Leclerc tenta descrever esse momento: “… a alma de Francisco se rasgava e sentimentos contraditórios se debatiam dentro dele. A inefável beleza do serafim e seu olhar benevolente e cheio de graça o fascinavam e  o enchiam de alegria. Ao mesmo tempo, no entanto, o sofrimento do crucificado o aterrorizava. Perguntava-se, então: Como um espírito glorioso, imortal e tão belo podia sofrer a mais cruel agonia?  Não sabia o que pensar. A agonia estava junto com o êxtase. A Paixão e a Glória, associadas de maneira estranha,  pareciam cair sobre ele como um pássaro de rapina” ( in Francisco de Assis. O retorno ao Evangelho,  p. 108).

Francisco não é mais dono de si. Aos poucos, ao longo dos anos da vida, ele foi se despedindo de si, se despojando, esvaziando-se de si mesmo e no espaço do vazio veio o êxtase. O amado ganha a força do amor do Amante. Quem puder compreender, que compreenda.  Talvez esse Francisco pudesse dizer com Paulo:  Não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim!

Paul Claudel, tentando penetrar no Francisco que desce do monte, escreve: “Francisco  tinha dado sua alma de tal forma que nem mesmo seu corpo conserva mais. Quando se lhe pede uma explicação, nada tem a nos dizer. Ele é propriedade de alguém que não explica, mas plenifica. É todo inteiro doação, como um esposo ou um recém-nascido. Caminha ao olhar de todos os homens como alguém que está inebriado, como um esposo que geme e que sorri, cambaleante e ferido de uma glória da qual ele é o inexplicável consorte.  Quem desce trôpego do Alverne e mostra chaga e cicatriz secretamente a Clara é Jesus Cristo com Francisco, fazendo uma única realidade viva, sofredora e redentora”  (cf. E.Leclerc, op. cit. p. 109).
A partir desse momento Francisco tem o selo do Amado gravado em seu coração e em sua carne. Agora era uma relíquia viva descendo a montanha.  

Nós, filhos de Francisco  das chagas e das transfigurações, nos recolhemos no silêncio e tentamos pedir a Deus que pela intercessão do Francisco das Chagas nos leva ao Cristo iluminado, transfigurado e ressuscitado.

Francisco da minha vida

Francisco,
pequeno e grande Francisco,
tu continuas vivo entre nós.
Tu és o meu irmão, meu irmão mais velho,
meu irmão modelo,meu irmão da roupa marrom,
das chagas douradas na mão
nos pés e no coração,
apaixonado pelo Senhor Jesus.
Gosto de te contemplar
erguendo os braços ébrio de amor,
cantando os louvores do Altíssimo, Onipotente
e grande Senhor!
Acompanho-te pelas ruas de Assis
com o irmão sol que te aquece  o  rosto,
pegando nas mãos a irmãzinha água
tão casta e tão transparente,
pisando na terra mãe
que produz variedade de flores e frutos.
Gosto de ver teu olhar acompanhar os irmãos,
os irmãos leprosos que chamavas de irmãos cristãos,
olhando os irmãos que te seguem,
todos eles que são filhos do Altíssimo.
Espreito-te ao jogares tuas roupas
nas mãos de teu pai e a proclamares solenemente
que o teu Pai está nos céus.
Aplaudo-te quando dizes
que os teus seguidores serão menores
e nunca hão de se alegrar,  a não ser com
o último de todos os lugares.
Vejo-te percorrendo as ruas e ruelas
da meiga Assis dizendo a todos que o Amor
não é amado.
Aprecio a tua coragem de partir sem segurança,
sem sacola e sem dinheiro
para dizer a todos os homens
que chegou o Reino novo
do Filho de Virgem Maria.
Recolho-me num cantinho
e vejo que sais da contemplação
com as chagas de Cristo Jesus
nas mãos, nos pés e no coração.
Morro e renasço contigo
quando  cantas o salmo que fala que é preciso
que Deus nos tire desta prisão.
Francisco de ontem e de sempre,
Francisco da roupa marrom,
Francisco da minha vida!