quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

“Francisco, homem feito oração”.



Frei Almir Guimarães

Seguindo os passos de São Francisco, que se transformou “não só o orante, mas na própria oração”  (2Cel 95), removendo todos os obstáculos, “os irmãos sirvam, amem, honrem e adorem o  Senhor Deus de coração limpo e mente pura”, porquanto, é necessário orar sempre sem esmorecer, pois tais são os adoradores que o Pai procura  (Constituições  Gerais  OFM art. 10, § 2).

Assim como Jesus foi o verdadeiro adorador do Pai, façam da oração e da contemplação, a alma do próprio ser e do próprio agir  (Regra OFS, n. 8).

 Segundo Tomás de Celano, Francisco de Assis é a personificação da oração. Não era um orante, mas a própria oração. Dificilmente poder-se-ia ter encontrado uma fórmula mais feliz para descrever a dimensão orante de Francisco. É o homem do ininterrupto diálogo com o Senhor. Depois de sua conversão passa a viver na atmosfera de Deus. Percorre um longo e maravilhoso itinerário em seu relacionamento com Deus: há os suspiros profundos de insatisfação com sua vida quando é convocado a dirigir-se a novos horizontes;   percorre as planícies e vales onde estão os homens, seus irmãos, morando com eles, seus irmãos de vocação e de seguimento límpido do Evangelho; há essa comunhão amorosa de Francisco com o Senhor Jesus;  sua oração passa  pela exaltação da bondade  do Criador manifestada no sol e nas estrelas, na água e na mãe terra; oração de imensa intimidade atingindo seu píncaro mais denso e imperscrutável na configuração de  Francisco a Cristo Jesus no alto do Tabor franciscano que é o Alverne. Ali podia ele dizer com Paulo: “Já não sou eu que vivo. É Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). Para Francisco, a oração significa, efetivamente, dar lugar a um Outro.

 A oração é, efetivamente, um mistério. É experiência que se faz e não discurso que se profere. Tem muito a ver com amizade e amor. É relacionamento entre a fraqueza e a plenitude, o amante e a amada, o esposo e a esposa. Pela oração, o homem tenta aproximar-se do seu Senhor que é amor, fogo, exigência, fonte de vida, misericórdia, paz e  Francisco viveu o relacionamento com Deus como plenitude inebriante. Os louvores ao Deus altíssimo, escritos por Francisco no final de sua vida, no verso da  bênção dada a Frei Leão: “Vós sois o Forte… o Grande… o Altíssimo… a Delícia do amor…a Sabedoria… a Humildade… a Beleza, nossa eterna vida… (Louvores ao Deus Altíssimo). Curioso observar, que neste texto, escrito quase no final da vida do santo,   haja tão pouca alusão a Cristo. Nesses versos de louvor, sente-se  um transbordamento talvez não encontrado em outro místico da historia da Igreja. A impressão que se tem é que o Amante seduziu  o amado. A sedução foi tal que o biógrafo chegou a afirmar que o santo estava separado de Deus apenas pela parede da carne e procurava  estar  sempre presente no céu 9 (cf. 2Cel 94).

Desde o momento de sua conversão, Francisco é alguém que procura fazer espaço para a chegada de um Outro. Assim começou a ser trabalhado pelo Espírito. Michel Hubaut concebe a oração em São Francisco como abertura ao Espírito (cf. M. Hubaut, El camino franciscano (trad. Espanhola do original francês), Estela, 1984, p. 53-67). Foi fazendo lugar dentro de si para acolher um Outro e viver em função dele. Foi se dando conta que era preciso romper com anelos e desejos, ambições e projetos pessoais. O processo de conversão de Francisco é marcado por um período de vazio, de não sentido, de espera de algo que estava para acontecer, como realização de uma promessa de amor. Os dias longos passados na prisão de Perusa, a prolongada enfermidade, os sonhos que povoavam tumultuadamente seu interior foram levando Francisco do exterior para o interior, do aparente para o essencial, do ilusório para a verdade. Nessa época, Francisco vive na atmosfera das perguntas, questionamentos, insatisfações: “Que queres de mim? Que queres que eu faça? Por que esta insatisfação dentro de mim?” Tais questões são parecidas com aquelas que colocamos hoje no começo de nossa aventura espiritual.

 Michel Hubaut ainda observa: “O Espírito o orienta rumo ao futuro imprevisto de Deus. Nele desperta uma “faculdade interior” e descobre que o homem é dotado de um “sentido interior” que a Bíblia chama de coração capaz de colocá-lo em relação com Deus. Se o homem experimenta dificuldade em relacionar-se com o  Senhor é porque perdeu o caminho de seu coração. Paulo, o apóstolo, fala do homem sem inteligência e obscurecido. Os grandes orantes foram sempre pessoas que se empenharam em visitar o seu interior a fim de que  lá encontrassem Alguém que andava querendo plenificar-lhes o coração. Os que desejam fazer esta experiência de plenitude despoja-se de tudo, toma distância da autossuficiência, renuncia a si mesmo. Sem esse vazio interior, vazio de si, não há possibilidade de chegada do Outro.

 Éloi Leclerc mostra como Francisco começa a desprender-se das glorias humanas  e do desejo de prestígio. Nada o satisfaz. Aos poucos vai se dirigindo para regiões de “A partir desse dia (um pouco antes da conversão), inaugura-se na vida de Francisco um tempo de silêncio. Sim, uma imperiosa necessidade de silêncio toma conta dele. Procura afastar-se da agitação mundana e do mundo dos negócios. Esforça-se, segundo a expressão de Tomás de Celano, ‘por reter Cristo em seu interior’ (1Cel 6). A superfície do  mundo tão cheia de brilho não mais o atrai. Procura a profundidade de uma caverna ou  sombra de uma capela solitária nos campos. Lá acha o seu tesouro, diz ele. Passa nesses lugares horas a fio. Tornou-se um homem convocado pela profundidade” (E. Leclerc, Francisco de Assis. Retorno ao Evangelho, Petrópolis, p.35).

 Quem reencontra o caminho do coração e se dirige às regiões da profundidade começa a empreender um novo êxodo ou empreende uma viagem como a de Abraão: deixa suas seguranças, sua parentela, a terra firme em que costuma pisar e se dirige a horizontes novos que serão indicados pela ternura do amor de Deus. O que pode então acontecer é mistério que está nas mãos e no coração de Deus. Certamente, maravilhas poderão acontecer se o que foi convidado tiver a coragem de despojar-se de si mesmo, de seus projetos para acolher a visita do Outro, do Inesperado.

 Francisco experimentará durante toda a sua via uma imperiosa necessidade da oração silenciosa e de espaços de recolhimento. A vida e a trajetória de Francisco serão pontilhadas de lugares ermos e de eremitérios. Descobre o gosto pelo silêncio na vetusta e  arruinada capela de São Damião. Mais tarde, nesse lugar, as Clarissas viveriam intensíssima contemplação silenciosa. Os biógrafos assinalam à profusão esses espaços eremíticos: Poggio Bustone, Greccio, Fonte Colombo, Rivo Torto, Narni. Lugar de silêncio e de oração era o Alverne, ápice da vida de união de Francisco com o Altíssimo, monte da transfiguração dolorosa desse amante do Esposo.

 Francisco sempre desejou com grande intensidade esta vida eremítica. Chegou mesmo a pensar que fosse esse o caminho que o Senhor queria que ele percorresse. Queria o retiro exterior nos bosques, nas fendas dos rochedos, nas capelas abandonadas. “Quando rezava nos matos e nos lugares desertos, enchia os bosques se gemidos, derramava lágrimas por toda a parte, batia no peito e, e achando-se mais escondido que num esconderijo conversava  muitas vezes em voz alta com  Respondia ao Juiz, fazia pedidos ao Pai, conversava com o amigo, brincava com o esposo”(2Cel  95).

 Nestas longas e intermináveis jornadas de oração, Francisco foi acolhendo a visita do Espírito, um presente que ele mesmo, por suas próprias forças não podia se oferecer. A oração não é, em primeiro lugar, alguma coisa que fazemos, mas uma acolhida que oferecemos. O orante permite que Deus se aposse dele: “Quer andasse ou parasse, viajando ou residindo no convento, trabalhando ou repousando, entregava-se à oração, de modo que parecia ter consagrado a ela todo o seu coração e todo o seu corpo, toda a sua atividade e todo o seu tempo. Compenetrado destas verdades jamais desprezava por negligência qualquer visita do Espírito; mas ao contrário, sempre que elas se apresentavam, seguia-as cuidadosamente, e enquanto duravam, procurava gozar da doçura que lhe comunicavam” (Legenda Maior de Boaventura 10, 1-2).

Francisco não é mais dono de si, de sua história, de seu presente e de seu futuro. Está sempre se colocando nas mãos do Altíssimo esperando suas novas manifestações, sempre no universo da fé.  Forçosamente, o Deus Altíssimo dos cristãos se manifesta na pobreza e no aniquilamento de Cristo Jesus. Por isso, a “sequela Chriti” será caminho de amadurecimento de sua oração que vai se tornar “crística”

Um comentário:

  1. Gostaria de receber aviso sempre que houver publicação no blog. Como faço?

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