sábado, 14 de julho de 2018

São Boaventura, o teólogo de Cristo – III





Queridos irmãos e irmãs:

Nesta manhã, continuando com a reflexão da quarta-feira passada, eu gostaria de aprofundar convosco em outros aspectos da doutrina de São Boaventura de Bagnoregio. Ele foi um eminente teólogo, que merece ser colocado junto a outro grandíssimo pensador, seu contemporâneo Santo Tomás de Aquino. Ambos escrutaram os mistérios da Revelação, valorizando os recursos da razão humana, nesse fecundo diálogo entre fé e razão que caracteriza o Medievo cristão, convertendo-a em uma época de grande vivacidade intelectual, além de fé e renovação eclesial, frequentemente pouco evidenciada.

Outras analogias os unem: tanto Boaventura, franciscano, como Tomás, dominicano, pertenciam às Ordens Mendicantes, que, com seu frescor espiritual, como recordei nas catequeses anteriores, renovaram a Igreja inteira no século XIII e atraíram muitos seguidores. Os dois serviram a Igreja com diligência, paixão e amor, até o ponto de serem convidados a participar do Concílio Ecumênico de Lyon de 1274, o mesmo ano em que morrerem: Tomás, enquanto se dirigia a Lyon, Boaventura durante a celebração do mesmo concílio. Também na Praça de São Pedro, as estátuas dos dois santos estão paralelas, colocadas precisamente no começo da Colunata, partindo da fachada da Basílica Vaticana: uma no Braço da esquerda e outra no Braço da direita. Apesar de todos estes aspectos, podemos distinguir nos dois santos duas aproximações diferentes da investigação filosófica e teológica, que mostram a originalidade e profundidade do pensamento de um e de outro. Eu gostaria de destacar algumas destas diferenças.

Uma primeira diferença se refere ao conceito de teologia. Ambos os doutores se perguntam se a teologia é uma ciência prática ou uma ciência teórica, especulativa. Santo Tomás reflete sobre duas possíveis respostas contrárias. A primeira diz: a teologia é reflexão sobre a fé e o objeto da fé é que o homem chegue a ser bom, viva segundo a vontade de Deus. Portanto, o fim da teologia deveria ser o de guiar pelo caminho correto, bom; em consequência, esta, no fundo, é uma ciência prática. A outra postura diz: a teologia tenta conhecer Deus. Nós somos obra de Deus; Deus está acima do nosso agir, opera em nosso agir correto. Portanto, trata-se substancialmente não do nosso agir, mas de conhecer Deus, não do que fazemos. A conclusão de Santo Tomás é: a teologia envolve ambos os aspectos: é teórica – tenta conhecer Deus cada vez mais – e é prática: tenta orientar nossa vida ao bem. Mas há uma primazia do conhecimento: devemos sobretudo conhecer Deus, depois vem o agir segundo Deus (Summa Theologiae Ia, q. 1, art. 4). Esta primazia do conhecimento frente à práxis é significativa para a orientação fundamental de Santo Tomás.

A resposta de São Boaventura é muito parecida, mas os acentos são diferentes. São Boaventura conhece os mesmos argumentos em uma e em outra direção, como Santo Tomás, mas, para responder à pergunta sobre se a teologia é uma ciência prática ou teórica, São Boaventura faz uma tripla distinção – amplia, portanto, a alternativa entre teórica (primazia do conhecimento) e prática (primazia da práxis), acrescentando uma terceira postura, que chama de “sapiencial”, e afirmando que a sabedoria abraça ambos os aspectos. E depois prossegue: a sabedoria busca a contemplação (como a mais alta forma de conhecimento) e tem como intenção ut boni fiamus – que sejamos bons, sobretudo isso: que sejamos bons (cfr Breviloquium, Prologus, 5). Depois acrescenta: “A fé está no intelecto, de tal maneira que provoca o afeto. Por exemplo: conhecer que Cristo morreu ‘por nós’ não fica apenas no conhecimento, mas se converte necessariamente em afeto, em amor” (Proemium in I Sent., q. 3).

Na mesma linha, move-se sua defesa da teologia, isto é, da reflexão racional e metódica da fé. São Boaventura recolhe alguns argumentos contra o fazer teologia, talvez difundidos também em uma parte dos frades franciscanos e presentes também em nossa época: a razão esvaziaria a fé, seria uma postura violenta com relação à Palavra de Deus; devemos escutar e não analisar a Palavra de Deus (cf. Carta de São Francisco de Assis a Santo Antônio de Pádua). A estes argumentos contra a teologia, que demonstram os perigos existentes na própria teologia, o santo responde: é verdade que existe uma forma arrogante de fazer teologia, uma soberba da razão, que se coloca acima da Palavra de Deus. Mas a verdadeira teologia, o trabalho racional da verdadeira e da boa teologia tem outra origem, não a soberba da razão. Quem ama quer conhecer cada vez mais e melhor o amado; a verdadeira teologia não empenha a razão e a pesquisa motivada pela soberba, mas sed propter amorem eius cui assentit – é motivada pelo amor Àquele a quem deu seu consentimento (Proemium in I Sent., q. 2) – e quer conhecer melhor o Amado: esta é a intenção fundamental da teologia. Para São Boaventura, é determinante no final, portanto, a primazia do amor.

Em consequência, Santo Tomás de Aquino e São Boaventura definem de maneira diferente o destino último do homem, sua felicidade plena: para Santo Tomás, o fim supremo ao qual nosso desejo se dirige é ver Deus. Neste simples ato de ver Deus, todos os problemas encontram solução: somos felizes, não precisamos de mais nada.
Para São Boaventura, o destino último do homem é, por outro lado, amar a Deus: o encontro e a união do seu amor e do nosso. Esta é, para ele, a definição mais adequada da nossa felicidade.

Nesta linha, poderíamos dizer também que a categoria mais alta, para Santo Tomás, é a verdade, enquanto para São Boaventura é o bem. Seria errôneo ver nestas duas respostas uma contradição. Para ambos, a verdade também é o bem e o bem também é a verdade; ver Deus é amar e amar é ver. Trata-se, portanto, de acentos diferentes de uma visão fundamentalmente comum. Ambos os acentos formaram tradições diferentes e espiritualidades variadas e, assim, mostraram a fecundidade da fé, una na diversidade das suas expressões.

Voltemos a São Boaventura. É evidente que o acento específico da sua teologia, do qual somente dei um exemplo, explica-se a partir do carisma franciscano: o Pobrezinho de Assis, muito além dos debates intelectuais da sua época, havia mostrado, com toda a sua vida, a primazia do amor: era um ícone vivente e enamorado de Cristo e assim fez presente, no seu tempo, a figura do Senhor: convenceu seus contemporâneos não com as palavras, mas com a sua vida. Em todas as obras de São Boaventura, também em suas obras científicas, de escola, vemos e encontramos esta inspiração franciscana, isto é, percebe-se que ele pensa partindo do encontro com o Pobrezinho de Assis. Mas, para entender a elaboração concreta do tema “primazia do amor”, devemos ter presente também uma outra fonte: os escritos do chamado Pseudo-Dionísio, um teólogo siríaco do século VI que se escondeu sob o pseudônimo de Dionísio o Areopagita, indicando, com esse nome, uma figura dos Atos dos Apóstolos (cf. 17, 34). Este teólogo havia criado uma teologia litúrgica e uma teologia mística e havia falado amplamente das diversas ordens dos anjos. Seus escritos foram traduzidos ao latim no século IX; na época de São Boaventura – estamos no século XIII –, aparecia uma nova tradição, que provocou o interesse do santo e de outros teólogos do seu século. Duas coisas atraíam em particular a atenção de São Boaventura:

1. O Pseudo-Dionísio fala de 9 ordens dos anjos, cujos nomes ele havia encontrado na Escritura e depois havia organizado à sua maneira, desde os simples anjos até os serafins. São Boaventura interpreta estas ordens de anjos como degraus na aproximação da criatura de Deus. Assim, podem representar o caminho humano, a subida até a comunhão com Deus. Para São Boaventura, não existe dúvida alguma: São Francisco de Assis pertencia à ordem seráfica, à ordem suprema, ao coro dos serafins, isto é, era puro fogo de amor. E assim deveriam ter sido os franciscanos. Mas São Boaventura sabia bem que este último grau de aproximação de Deus não pode ser inserido em um ordenamento jurídico, mas é sempre um dom particular de Deus. Por isso, a estrutura da ordem franciscana é mais modesta, mais realista, mas deve ajudar os membros a se aproximarem cada vez mais de uma existência seráfica de puro amor. Na última quarta-feira, falei sobre esta síntese entre realismo sóbrio e radicalidade evangélica no pensamento e na ação de São Boaventura.

2. São Boaventura, no entanto, encontrou nos escritos do Pseudo-Dionísio outro elemento, para ele ainda mais importante. Enquanto para Santo Agostinho o intellectus, o ver com a razão e com o coração, era a última categoria do conhecimento, o Pseudo-Dionísio dá um passo além: na subida até Deus, pode-se chegar a um ponto em que a razão já não enxerga mais. Porém, na noite do intelecto, o amor ainda vê – vê o que permanece inacessível para a razão. O amor se estende muito além da razão, vê mais, entra mais profundamente no mistério de Deus. São Boaventura ficou fascinado com esta visão, que ia ao encontro da sua espiritualidade franciscana. Precisamente na noite escura da cruz, aparece toda a grandeza do amor divino; onde a razão já não enxerga mais, o amor vê. As palavras conclusivas do seu “Itinerário da mente em Deus”, em uma leitura superficial, podem parecer como a expressão exagerada de uma devoção sem conteúdo; lidas, no entanto, à luz da teologia da cruz de São Boaventura, são uma expressão límpida e realista da espiritualidade franciscana: “Se agora desejas saber como isso acontece (isto é, a subida até Deus), interroga a graça, não a doutrina; ao desejo, não ao intelecto; ao gemido da oração, não ao estudo da letra; (…) não a luz, mas ao fogo que inflama e transporta tudo em Deus” (VII, 6). Tudo isso não é anti-intelectual nem tampouco antirracional: supõe o caminho da razão, mas o transcende no amor de Cristo crucificado. Com esta transformação da mística do Pseudo-Dionísio, São Boaventura se coloca nos inícios de uma grande corrente mística, que elevou e purificou muito a mente humana: é um cume na história do espírito humano.

Esta teologia da cruz, nascida do encontro entre a teologia do Pseudo-Dionísio e a espiritualidade franciscana, não deve nos fazer esquecer que São Boaventura compartilha com São Francisco de Assis também o amor à criação, a alegria pela beleza da criação de Deus. Cito, sobre este ponto, uma frase do primeiro capítulo do “Itinerário”: “Aquele (…) que não vê os esplendores imensuráveis das criaturas está cego; aquele que não desperta por suas muitas vozes está surdo; quem não louva Deus por todas estas maravilhas está mudo; quem, com tantos sinais, não se eleva ao primeiro princípio é néscio” (I, 15). Toda a criação fala em voz alta de Deus, do Deus bom e belo, do seu amor.

Toda a nossa vida é, portanto, para São Boaventura, um “itinerário”, uma peregrinação, uma subida até Deus. Mas somente com as nossas forças não podemos subir até a altura de Deus. O próprio Deus deve nos ajudar, deve “conduzir-nos” para o alto. Por isso, é necessária a oração. A oração – assim diz o santo – é a mãe e a origem da elevação: sursum actio, ação que leva ao alto. Concluo, por isso, com a oração com que Boaventura inicia seu “Itinerário”: “Oremos, portanto, e digamos ao Senhor nosso Deus: ‘Conduzi-me, Senhor, em vosso caminho e eu caminharei em vossa verdade. Que o meu coração se alegre ao temer o vosso nome’” (I, 1)..

Audiência do Santo Padre, no dia 17 de março.

sexta-feira, 13 de julho de 2018

São Boaventura, o teólogo de Cristo – II




Queridos irmãos e irmãs:

Na semana passada, falei sobre a vida e a personalidade de São Boaventura de Bagnoregio. Nesta manhã, eu gostaria de prosseguir com sua apresentação, detendo-me em uma parte da sua obra literária e da sua doutrina.

Como eu já dizia, São Boaventura, entre seus muitos méritos, teve o de interpretar autêntica e fielmente a figura de São Francisco de Assis, venerado e estudado por ele com grande amor. De modo particular, na época de São Boaventura, uma corrente de Frades Menores, chamados “espirituais”, sustentava que com São Francisco se havia inaugurado uma fase totalmente nova da história, teria aparecido o “Evangelho eterno” de que falava o Apocalipse, que substituía o Novo Testamento. Este grupo afirmava que a Igreja já tinha esgotado seu papel histórico e que seu lugar era ocupado por uma comunidade carismática de homens livres, guiados interiormente pelo Espírito, isto é, os “franciscanos espirituais”.

Na base das ideias deste grupo, estavam os escritos de um abade cisterciense, Joaquim de Fiore, falecido em 1202. Em suas obras, ele afirmava um ritmo trinitário da história. Considerava o Antigo Testamento como a era do Pai, seguida pelo tempo do Filho, o tempo da Igreja. Seria preciso esperar a terceira era, a do Espírito Santo. Toda a história era assim interpretada como uma história de progresso: da severidade do Antigo Testamento à relativa liberdade do tempo do Filho, na Igreja, até a plena liberdade dos filhos de Deus, no período do Espírito Santo, que teria sido também, finalmente, o período da paz entre os homens, da reconciliação dos povos e das religiões. Joaquim de Fiore teria suscitado a esperança de que o início do novo tempo teria vindo de um novo monaquismo. Assim, é compreensível que um grupo de franciscanos acreditasse reconhecer em São Francisco de Assis o iniciador do tempo novo e, em sua ordem, a comunidade do período novo – a comunidade do tempo do Espírito Santo, que deixava para trás a Igreja hierárquica para iniciar a nova Igreja do Espírito, já não ligada às velhas estruturas.

Existia, portanto, o risco de um gravíssimo mal-entendido da mensagem de São Francisco, da sua humilde fidelidade ao Evangelho e à Igreja, e este equívoco comportava uma visão errônea do cristianismo em seu conjunto.

São Boaventura, que em 1257 se converteu em ministro geral da ordem franciscana, encontrou-se frente a uma grande tensão dentro de sua própria ordem, precisamente por causa dos que sustentavam a mencionada corrente dos “franciscanos espirituais”, que se remetia a Joaquim de Fiore.

Precisamente para responder a esse grupo e voltar a dar unidade à ordem, São Boaventura estudou com cuidado os escritos autênticos de Joaquim de Fiore e os atribuídos a ele e, levando em consideração a necessidade de apresentar corretamente a figura e a mensagem do seu amado São Francisco, quis expor uma visão correta da teologia da história. São Boaventura enfrentou o problema precisamente em sua última obra, uma recopilação de conferências aos monges do estúdio parisiense, que ficou incompleta e que foi terminada através das transcrições dos ouvintes, intitulada Hexaëmeron, isto é, uma explicação alegórica dos 6 dias da criação. Os Padres da Igreja consideravam os 6 ou 7 dias do relato sobre a criação como profecia da história do mundo, da humanidade. Os 7 dias representavam para eles 7 períodos da história, mais tarde interpretados também como 7 milênios. Com Cristo, teríamos entrado no último, isto é, no sexto período da história, ao que seguiria o grande sábado de Deus. São Boaventura supõe esta interpretação histórica da relação dos dias da criação, mas de uma forma muito livre e inovadora. Para ele, dois fenômenos da sua época tornam necessária uma nova interpretação do curso da história:

O primeiro: a figura de São Francisco, o homem totalmente unido a Cristo até a comunhão dos estigmas, quase um alter Christus; e, com São Francisco, a nova comunidade criada por ele, diferente do monaquismo conhecido até então. Este fenômeno exigia uma nova interpretação, como novidade de Deus aparecida nesse momento.
O segundo: a postura de Joaquim de Fiore, que anunciava um novo monaquismo e um período totalmente novo da história, indo muito além da revelação do Novo Testamento, exigia uma resposta.

Como ministro geral da ordem dos franciscanos, São Boaventura havia visto imediatamente que, com a concepção espiritualista, inspirada em Joaquim de Fiore, a ordem não era governável, mas caminhava logicamente rumo à anarquia. Para ele, havia duas consequências:

A primeira: a necessidade prática de estruturas e de inserção na realidade da Igreja hierárquica, da Igreja real, precisava de um fundamento teológico, também porque os demais, os que seguiam a concepção espiritualista, mostravam um aparente fundamento teológico.

A segunda: ainda levando em conta o realismo necessário, não se podia perder a novidade da figura de São Francisco.
Como São Boaventura respondeu à exigência prática e teórica? Da sua resposta, só posso dar aqui um resumo muito esquemático e incompleto em alguns pontos:

1. São Boaventura rejeita a ideia do ritmo trinitário da história. Deus é um para toda a história e não se divide em 3 divindades. Por conseguinte, a história é uma, ainda que seja um caminho e – segundo São Boaventura – um caminho de progresso.
2. Jesus Cristo é a última palavra de Deus; n’Ele, Deus disse tudo, doando a si mesmo. Mais do que Ele mesmo, Deus não pode dizer nem dar. O Espírito é Espírito do Pai e do Filho. O próprio Cristo diz do Espírito Santo: “… Ele vos recordará tudo o que eu vos disse” (Jo 14, 26), “tomará do que é meu e vos comunicará” (Jo 16, 15). Portanto, não existe outro Evangelho mais alto, não existe outra Igreja a esperar. Por isso, também a ordem de São Francisco deve inserir-se nesta Igreja, em sua fé, em seu ordenamento hierárquico.

3. Isso não significa que a Igreja é imóvel, fixa no passado e que não possa haver novidades nela. Opera Christi non deficiunt, sed proficiunt: as obras de Cristo não voltam atrás, não diminuem, mas progridem, diz o santo na carta De tribus quaestionibus. Assim, São Boaventura formula explicitamente a ideia do progresso e está é uma novidade com relação aos Padres da Igreja e a grande parte dos seus contemporâneos. Para São Boaventura, Cristo já não é, como era para dos Padres da Igreja, o final, mas o centro da história; com Cristo, a história não acaba, mas começa um novo período.

Outra consequência é a seguinte: até aquele momento, dominava a ideia de que os Padres da Igreja eram o cume absoluto da teologia; todas as gerações seguintes poderiam somente ser suas discípulas. Também São Boaventura reconhece os Padres como mestres para sempre, mas o fenômeno de São Francisco lhe dá a certeza de que a riqueza da Palavra de Deus é inesgotável e que também nas novas gerações podem aparecer novas luzes. A unicidade de Cristo garante também a novidade e renovação em todos os períodos da história.

Certamente, a ordem franciscana – assim sublinha – pertence à Igreja de Jesus Cristo, a Igreja apostólica, e não pode ser construído um espiritualismo utópico. Mas, ao mesmo tempo, é válida a novidade desta ordem com relação ao monaquismo clássico, e São Boaventura – como comentei na catequese anterior – defendeu esta novidade contra os ataques do clero secular de Paris: os franciscanos não têm um mosteiro fixo, podem estar presentes em todos os lugares para anunciar o Evangelho. Precisamente a ruptura com a estabilidade característica do monaquismo a favor de uma nova flexibilidade restituiu à Igreja o dinamismo missionário.

Neste ponto, talvez seja útil dizer que também hoje existem visões segundo as quais toda a história da Igreja no segundo milênio teria sido um ocaso permanente; alguns veem o ocaso imediatamente depois do Novo Testamento. Na verdade, Opera Christi non deficiunt, sed proficiunt, as obras de Cristo não voltam atrás, mas progridem. O que seria da Igreja sem a nova espiritualidade dos cistercienses, dos franciscanos e dominicanos, da espiritualidade de Santa Teresa de Ávila ou de São João da Cruz…? Também hoje vale esta afirmação: Opera Christi non deficiunt, sed proficiunt, seguem adiante. São Boaventura nos ensina o conjunto do necessário discernimento, também severo, do realismo sóbrio e da abertura aos novos carismas dados por Cristo, no Espírito Santo, à sua Igreja.

E enquanto se repete esta ideia do ocaso, há também outra ideia, este “utopismo espiritualista”, que se repete. Sabemos, de fato, que após o Concílio Vaticano II, alguns estavam convencidos de que tudo seria novo, de que haveria outra Igreja, de que a Igreja pré-conciliar tinha acabado e de que teríamos totalmente “outra”. Um utopismo anárquico! E, graças a Deus, os sábios timoneiros da barca de Pedro, o Papa Paulo VI e o Papa João Paulo II, por um lado, defenderam a novidade do Concílio e, por outro, ao mesmo tempo, defenderam a unicidade e a continuidade da Igreja, que é sempre Igreja de pecadores e sempre lugar da Graça.

4. Neste sentido, São Boaventura, como ministro geral dos franciscanos, adotou uma linha de governo na qual estava muito claro que a nova ordem não poderia, como comunidade, viver a mesma “altura escatológica” de São Francisco, em que ele vê antecipado o mundo futuro, mas que – guiado, ao mesmo tempo, por um realismo sadio e pelo valor espiritual – deveria aproximar-se o máximo possível da realização plena do Sermão da Montanha, que para São Francisco foi “a” regra, ainda levando em consideração os limites do homem, marcado pelo pecado original.

Vemos assim que, para São Boaventura, governar não era simplesmente fazer, mas sobretudo pensar e rezar. Na base do seu governo, encontramos sempre a oração e o pensamento; todas as suas decisões são resultado da reflexão, do pensamento iluminado pela oração. Seu contato íntimo com Cristo acompanhou sempre seu trabalho de ministro geral e, por isso, ele compôs uma série de escritos teológico-místicos, que expressam o ânimo do seu governo e manifestam a intenção de guiar interiormente a ordem, isto é, de governar não somente mediante mandatos e estruturas, mas guiando e iluminando as almas, orientando a Cristo.

Desses escritos seus, que são a alma do seu governo e que mostram o caminho a ser percorrido, seja individualmente ou como comunidade, eu gostaria de mencionar apenas um, sua obra-prima, Itinerarium mentis in Deum, que é um “manual” de contemplação mística. Este livro foi concebido em um lugar de profunda espiritualidade: o Monte La Verna, onde São Francisco recebeu os estigmas.

Na introdução, o autor ilustra as circunstâncias que deram origem a este escrito seu: “Enquanto meditava sobre as possibilidades da alma de ascender a Deus, apresentou-se a mim, por outro lado, este acontecimento admirável ocorrido naquele lugar ao beato Francisco, isto é, a visão do Serafim alado em forma de Crucificado. E, meditando sobre isso, imediatamente percebi que esta visão me oferecia o êxtase contemplativo do próprio Padre Francisco e, ao mesmo tempo, o caminho que conduz a ele” (Itinerario della mente in Dio, Prologo, 2, em Opere di San Bonaventura. Opuscoli Teologici /1, Roma 1993, p. 499).

As seis asas do Serafim se converteram, assim, no símbolo de seis etapas que conduzem progressivamente o homem ao conhecimento de Deus através da observação do mundo e das criaturas e através da exploração da própria alma com suas faculdades, até a união gratificante com a Trindade por meio de Cristo, a exemplo de São Francisco de Assis.

As últimas palavras do Itinerarium de São Boaventura, que respondem à pergunta sobre como se pode alcançar esta comunhão mística com Deus, pareciam descer ao profundo do coração: “Se agora desejas saber como isso acontece [a comunhão mística com Deus], interroga a graça, não a doutrina; ao desejo, não ao intelecto; ao gemido da oração, não ao estudo da letra; ao esposo, não ao professor; a Deus, não ao homem; à névoa, não à claridade; não à luz, mas ao fogo que inflama tudo e transporta a Deus com as fortes unções e os afetos ardentíssimos… Entremos, portanto, na névoa, silenciemos os afãs, as paixões e os fantasmas; passemos, com Cristo crucificado, deste mundo ao Pai, para que, após tê-lo visto, digamos com Felipe: Isso me basta” (ibid., VII, 6).

Queridos amigos, acolhamos o convite que nos dirige São Boaventura, o Doutor Seráfico, e entremos na escola do Mestre divino: escutemos sua Palavra de vida e de verdade, que ressoa no íntimo da nossa alma. Purifiquemos nossos pensamentos e nossas ações, para que Ele possa habitar em nós e nós possamos compreender sua voz divina, que nos atrai à felicidade verdadeira.

Audiência do Santo Padre, no dia 10 de março.

quinta-feira, 12 de julho de 2018

São Boaventura, o teólogo de Cristo – I



Queridos irmãos e irmãs:

Hoje, eu gostaria de falar de São Boaventura de Bagnoregio. Confesso que, ao propor-vos este tema, sinto certa nostalgia, porque me lembro das pesquisas, que fiz, como jovem estudante, precisamente sobre este autor, particularmente querido para mim. Seu conhecimento incidiu muito em minha formação. Com muita alegria, há poucos meses, peregrinei ao lugar do seu nascimento, Bagnoregio, uma pequena cidade italiana, no Lácio, que custodia com veneração sua memória.

Nascido provavelmente em 1217 e falecido em 1274, ele viveu no século XIII, uma época em que a fé cristã, penetrada profundamente na cultura e na sociedade da Europa, inspirou obras imperecíveis no campo da literatura, das artes visuais, da filosofia e da teologia. Entre as grandes figuras cristãs que contribuíram para a composição desta harmonia entre fé e cultura, destaca-se precisamente Boaventura, homem de ação e de contemplação, de profunda piedade e de prudência no governo.

Ele se chamava Giovanni da Fidanza. Um episódio que ocorreu quando ele ainda era menino marcou profundamente sua vida, como ele mesmo relata. Ele tinha contraído uma grave doença e nem sequer seu pai, que era médico, esperava salvá-lo da morte. Sua mãe, então, recorreu à intercessão de São Francisco de Assis, canonizado há pouco. E Giovanni foi curado. A figura do Pobrezinho de Assis se tornou ainda mais familiar para ele alguns anos depois, quando se encontrava em Paris, por razões de estudo. Havia obtido o diploma de Professor de Artes, que poderíamos comparar ao de um prestigioso Liceu da nossa época. Nesse ponto, como tantos jovens do passado e também de hoje, Giovanni se fez uma pergunta crucial: “O que vou fazer com a minha vida?”.

Fascinado pelo testemunho de fervor e radicalidade evangélica dos Frades Menores, que haviam chegado a Paris em 1219, Giovanni bateu à porta do convento franciscano dessa cidade e pediu para ser acolhido na grande família dos discípulos de São Francisco.

Muitos anos depois, explicou as razões da sua escolha: em São Francisco e no movimento iniciado por ele, reconheceu a ação de Cristo. De fato, escreveu em uma carta dirigida a outro religioso: “Confesso diante de Deus que a razão que me fez amar mais a vida do beato Francisco é que se parece com o início e com o crescimento da Igreja. A Igreja começou com simples pescadores e se enriqueceu imediatamente com doutores muito ilustres e sábios; a religião do beato Francisco não foi estabelecida pela prudência dos homens, mas por Cristo” (Epistula de tribus quaestionibus ad magistrum innominatum, em Opere di San Bonaventura. Introduzione generale, Roma 1990, p. 29).

Portanto, por volta de 1243, Giovanni vestiu o hábito franciscano e assumiu o nome de Boaventura. Foi imediatamente dirigido aos estudos e frequentou a Faculdade de Teologia da Universidade de Paris, seguindo um conjunto de cursos muito difíceis. Recebeu os diversos títulos requeridos pela carreira acadêmica, os de “bacharel bíblico” e o de “bacharel sentenciário”. Assim, Boaventura estudou profundamente a Sagrada Escritura, as Sentenças de Pietro Lombardo, o manual de teologia daquela época e os mais importantes autores de teologia; e, em contato com os professores e estudantes que chegavam a Paris de toda a Europa, amadureceu sua própria reflexão pessoal e uma sensibilidade espiritual de grande valor que, no decorrer dos seguintes anos, ele soube mostrar em suas obras e sermões, convertendo-se, assim, em um dos teólogos mais importantes da história da Igreja. É significativo recordar o título da tese que ele defendeu para recebera habilitação no ensino da teologia, a licentia ubique docendi, como se dizia na época. Sua dissertação intitulava-se “Questões sobre o conhecimento de Cristo”. Este tema mostra o papel central que Cristo teve sempre na vida e nos ensinamentos de Boaventura. Podemos dizer sem hesitar que todo o seu pensamento foi profundamente cristocêntrico.

Naqueles anos, em Paris, a cidade adotiva de Boaventura, começou uma violenta polêmica contra os Frades Menores de São Francisco de Assis e os Frades Pregadores de São Domingos de Gusmão. Discutia-se seu direito de lecionar na Universidade e se duvidava inclusive da autenticidade da sua vida consagrada. Certamente, as mudanças introduzidas pelas Ordens Mendicantes na forma de entender a vida religiosa, das quais falei nas catequeses anteriores, eram tão inovadoras que nem todos chegavam a compreendê-las. Acrescentavam-se também, como às vezes acontece entre pessoas sinceramente religiosas, motivos de fraqueza humana, como a inveja e o ciúme.

Boaventura, ainda que cercado pela oposição dos demais professores universitários, já havia começado a lecionar na cátedra de teologia dos Franciscanos e, para responder àqueles que criticavam as Ordens Mendicantes, compôs um escrito intitulado “A perfeição evangélica”. Nele, demonstra como as Ordens Mendicantes, especialmente os Frades Menores, praticando os votos de pobreza, castidade e obediência, seguiam os conselhos do próprio Evangelho. Muito além destas circunstâncias históricas, o ensinamento proporcionado por Boaventura nesta obra e em sua vida permanece sempre atual: A Igreja se torna luminosa e bela pela fidelidade à vocação desses filhos seus e dessas filhas suas que não somente colocam em prática os preceitos evangélicos, mas que, por graça de Deus, estão chamados a observar seus conselhos e, assim, dão testemunho, com seu estilo de vida pobre, casto e obediente, de que o Evangelho é fonte de alegria e de perfeição.

O conflito se apaziguou, pelo menos por certo tempo e, por intervenção pessoal do Papa Alexandre IV, em 1257, Boaventura foi reconhecido oficialmente como doutor e professor da universidade parisiense. Contudo, teve de renunciar a este prestigioso cargo, porque nesse mesmo ano o capítulo geral da ordem o elegeu como ministro geral.

Ele desempenhou este cargo durante 17 anos, com sabedoria e dedicação, visitando as províncias, escrevendo aos irmãos, intervindo às vezes com certa severidade para eliminar os abusos. Quando Boaventura começou este serviço, a Ordem dos Frades Menores havia se desenvolvido de maneira prodigiosa: eram mais de 30 mil os frades dispersos em todo o Ocidente, com presenças missionárias no norte da África, no Oriente Médio e também em Pequim. Era preciso consolidar esta expansão e sobretudo conferir-lhe, em plena fidelidade ao carisma de Francisco, unidade de ação e de espírito.

De fato, entre os seguidores do santo de Assis, registravam-se diversas formas de interpretar sua mensagem e existia realmente o risco de uma fratura interna. Para evitar esse perigo, o capítulo geral da ordem em Narbona, em 1260, aceitou e ratificou um texto proposto por Boaventura, no qual se unificavam as normas que regulavam a vida cotidiana dos Frades Menores. Boaventura intuía, contudo, que as disposições legislativas, ainda inspiradas na sabedoria e na moderação, não eram suficientes para garantir a comunhão do espírito e dos corações. Era necessário compartilhar os mesmos ideais e as mesmas motivações. Por esta razão, Boaventura quis apresentar o autêntico carisma de Francisco, sua vida e seus ensinamentos. Por isso, recolheu com grande zelo documentos relativos ao Pobrezinho e escutou com atenção as lembranças daqueles que haviam conhecido diretamente Francisco. Daí nasceu uma biografia, historicamente bem fundada, do Santo de Assis, intitulada Legenda Maior, redigida também de maneira mais sucinta e chamada, por isso, de Legenda Minor. A palavra latina, ao contrário da italiana (e também do termo em português, “lenda”, N. do T.), não indica um fruto da fantasia, mas, pelo contrário, legenda significa um texto autorizado, a “ser lido” oficialmente. De fato, o capítulo geral dos Frades Menores, em 1263, reunido em Pisa, reconheceu na biografia de São Boaventura o retrato mais fiel do fundador e esta se converteu, assim, na biografia oficial do Santo.

Qual é a imagem de São Francisco que surge do coração e da caneta do seu filho devoto e sucessor, São Boaventura? O ponto essencial: Francisco é um alter Christus, um homem que buscou Cristo apaixonadamente. No amor que conduz à imitação, ele se conformou inteiramente com Ele. Este ideal, válido para todo cristão, ontem, hoje e sempre, foi indicado como programa também para a Igreja do terceiro milênio pelo meu predecessor, o venerável João Paulo II. Este programa, escrevia na carta Tertio Millennio ineunte, centra-se “no próprio Cristo, que temos de conhecer, amar, imitar, para n’Ele viver a vida trinitária e com Ele transformar a história até sua plenitude na Jerusalém celeste” (n. 29).

Em 1273, a vida de São Boaventura teve outra mudança. O Papa Gregório X quis consagrá-lo bispo e nomeá-lo como cardeal. Pediu-lhe também que preparasse um importantíssimo acontecimento eclesial: o II Concílio Ecumênico de Lion, que tinha como objetivo o restabelecimento da comunhão entre a Igreja latina e a grega. Ele se dedicou a esta tarefa com diligência, mas não chegou a ver a conclusão daquela cúpula ecumênica, porque morreu durante sua realização. Um anônimo notário pontifício compôs um elogio a Boaventura, que nos oferece um retrato conclusivo deste grande santo e excelente teólogo: “Homem bom, afável, piedoso e misericordioso, repleto de virtudes, amado por Deus e pelos homens (…). Deus, de fato, havia lhe dado tal graça, que todos aqueles que o viam eram invadidos por um amor que o coração não podia ocultar” (cf. J.G. Bougerol, Bonaventura, en A. Vauchez (vv.aa.), Storia dei santi e della santità cristiana. Vol. VI. L’epoca del rinnovamento evangelico, Milão, 1991, p. 91).

Recolhamos a herança deste santo doutor da Igreja, que nos recorda o sentido da nossa vida com estas palavras: “Na terra, podemos contemplar a imensidão divina através da razão e do assombro; já na pátria celeste – onde seremos semelhantes a Deus –, por meio da visão e do êxtase, entraremos na alegria de Deus” (La conoscenza di Cristo, q. 6, conclusione, em Opere di San Bonaventura. Opuscoli Teologici /1, Roma 1993, p. 187).

Texto do Papa Bento 16 na audiência do dia 3 de março.