quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial da Paz.



Mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial da Paz, celebrado em 1º de janeiro, que tem o tema “Vence a indiferença e conquista a paz”.

1. Deus não é indiferente; importa-Lhe a humanidade! Deus não a abandona! Com esta minha profunda convicção, quero, no início do novo Ano, formular votos de paz e bênçãos abundantes, sob o signo da esperança, para o futuro de cada homem e mulher, de cada família, povo e nação do mundo, e também dos chefes de Estado e de governo e dos responsáveis das religiões. Com efeito, não perdemos a esperança de que o ano de 2016 nos veja a todos firme e confiadamente empenhados, nos diferentes níveis, a realizar a justiça e a trabalhar pela paz. Na verdade, esta é dom de Deus e trabalho dos homens; a paz é dom de Deus, mas confiado a todos os homens e a todas as mulheres, que são chamados a realizá-lo.


Conservar as razões da esperança

2. Embora o ano passado tenha sido caracterizado, do princípio ao fim, por guerras e atos terroristas, com as suas trágicas consequências de sequestros de pessoas, perseguições por motivos étnicos ou religiosos, prevaricações, multiplicando-se cruelmente em muitas regiões do mundo, a ponto de assumir os contornos daquela que se poderia chamar uma «terceira guerra mundial por pedaços», todavia alguns acontecimentos dos últimos anos e também do ano passado incitam-me, com o novo ano em vista, a renovar a exortação a não perder a esperança na capacidade que o homem tem, com a graça de Deus, de superar o mal, não se rendendo à resignação nem à indiferença. Tais acontecimentos representam a capacidade de a humanidade agir solidariamente, perante as situações críticas, superando os interesses individualistas, a apatia e a indiferença.

Dentre tais acontecimentos, quero recordar o esforço feito para favorecer o encontro dos líderes mundiais, no âmbito da COP21, a fim de se procurar novos caminhos para enfrentar as alterações climáticas e salvaguardar o bem-estar da terra, a nossa casa comum. E isto remete para mais dois acontecimentos anteriores de nível mundial: a Cimeira de Adis-Abeba para arrecadação de fundos destinados ao desenvolvimento sustentável do mundo; e a adoção, por parte das Nações Unidas, da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, que visa assegurar, até ao referido ano, uma existência mais digna para todos, sobretudo para as populações pobres da terra.

O ano de 2015 foi um ano especial para a Igreja, nomeadamente porque registou o cinquentenário da publicação de dois documentos do Concílio Vaticano II que exprimem, de forma muito eloquente, o sentido de solidariedade da Igreja com o mundo. O Papa João XXIII, no início do Concílio, quis escancarar as janelas da Igreja, para que houvesse, entre ela e o mundo, uma comunicação mais aberta. Os dois documentos – Nostra Aetate e Gaudium et Spes – são expressões emblemáticas da nova relação de diálogo, solidariedade e convivência que a Igreja pretendia introduzir no interior da humanidade. Na Declaração Nostra Aetate, a Igreja foi chamada a abrir-se ao diálogo com as expressões religiosas não-cristãs. Na Constituição pastoral Gaudium et Spes – dado que «as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo»[1] –, a Igreja desejava estabelecer um diálogo com a família humana sobre os problemas do mundo, como sinal de solidariedade, respeito e amor.[2]

Nesta mesma perspectiva, com o Jubileu da Misericórdia, quero convidar a Igreja a rezar e trabalhar para que cada cristão possa maturar um coração humilde e compassivo, capaz de anunciar e testemunhar a misericórdia, de «perdoar e dar», de abrir-se «àqueles que vivem nas mais variadas periferias existenciais, que muitas vezes o mundo contemporâneo cria de forma dramática», sem cair «na indiferença que humilha, na habituação que anestesia o espírito e impede de descobrir a novidade, no cinismo que destrói».[3]

Variadas são as razões para crer na capacidade que a humanidade tem de agir, conjunta e solidariamente, reconhecendo a própria interligação e interdependência e tendo a peito os membros mais frágeis e a salvaguarda do bem comum. Esta atitude de solidária corresponsabilidade está na raiz da vocação fundamental à fraternidade e à vida comum. A dignidade e as relações interpessoais constituem-nos como seres humanos, queridos por Deus à sua imagem e semelhança. Como criaturas dotadas de inalienável dignidade, existimos relacionando-nos com os nossos irmãos e irmãs, pelos quais somos responsáveis e com os quais agimos solidariamente. Fora desta relação, passaríamos a ser menos humanos. É por isso mesmo que a indiferença constitui uma ameaça para a família humana. No limiar de um novo ano, quero convidar a todos para que reconheçam este fato a fim de se vencer a indiferença e conquistar a paz.

Algumas formas de indiferença

3. Não há dúvida de que o comportamento do indivíduo indiferente, de quem fecha o coração desinteressando-se dos outros, de quem fecha os olhos para não ver o que sucede ao seu redor ou se esquiva para não ser abalroado pelos problemas alheios, caracteriza uma tipologia humana bastante difundida e presente em cada época da história; mas, hoje em dia, superou decididamente o âmbito individual para assumir uma dimensão global, gerando o fenômeno da «globalização da indiferença».

A primeira forma de indiferença na sociedade humana é a indiferença para com Deus, da qual deriva também a indiferença para com o próximo e a criação. Trata-se de um dos graves efeitos de um falso humanismo e do materialismo prático, combinados com um pensamento relativista e niilista. O homem pensa que é o autor de si mesmo, da sua vida e da sociedade; sente-se autossuficiente e visa não só ocupar o lugar de Deus, mas prescindir completamente d’Ele; consequentemente, pensa que não deve nada a ninguém, exceto a si mesmo, e pretende ter apenas direitos.[4] Contra esta errônea compreensão que a pessoa tem de si mesma, Bento XVI recordava que nem o homem nem o seu desenvolvimento são capazes, por si mesmos, de se atribuir o próprio significado último;[5] e, antes dele, Paulo VI afirmara que «não há verdadeiro humanismo senão o aberto ao Absoluto, reconhecendo uma vocação que exprime a ideia exata do que é a vida humana».[6]

A indiferença para com o próximo assume diferentes fisionomias. Há quem esteja bem informado, ouça o rádio, leia os jornais ou veja programas de televisão, mas fá-lo de maneira entorpecida, quase numa condição de rendição: estas pessoas conhecem vagamente os dramas que afligem a humanidade, mas não se sentem envolvidas, não vivem a compaixão. Este é o comportamento de quem sabe, mas mantém o olhar, o pensamento e a ação voltados para si mesmo. Infelizmente, temos de constatar que o aumento das informações, próprio do nosso tempo, não significa, de por si, aumento de atenção aos problemas, se não for acompanhado por uma abertura das consciências em sentido solidário.[7] Antes, pode gerar uma certa saturação que anestesia e, em certa medida, relativiza a gravidade dos problemas. «Alguns comprazem-se simplesmente em culpar, dos próprios males, os pobres e os países pobres, com generalizações indevidas, e pretendem encontrar a solução numa “educação” que os tranquilize e transforme em seres domesticados e inofensivos. Isto torna-se ainda mais irritante, quando os excluídos veem crescer este câncer social que é a corrupção profundamente radicada em muitos países – nos seus governos, empresários e instituições – seja qual for a ideologia política dos governantes».[8]

Noutros casos, a indiferença manifesta-se como falta de atenção à realidade circundante, especialmente a mais distante. Algumas pessoas preferem não indagar, não se informar e vivem o seu bem-estar e o seu conforto, surdas ao grito de angústia da humanidade sofredora. Quase sem nos dar conta, tornámo-nos incapazes de sentir compaixão pelos outros, pelos seus dramas; não nos interessa ocupar-nos deles, como se aquilo que lhes sucede fosse responsabilidade alheia, que não nos compete.[9] «Quando estamos bem e comodamente instalados, esquecemo-nos certamente dos outros (isto, Deus Pai nunca o faz!), não nos interessam os seus problemas, nem as tribulações e injustiças que sofrem; e, assim, o nosso coração cai na indiferença: encontrando-me relativamente bem e confortável, esqueço-me dos que não estão bem».[10]

Vivendo nós numa casa comum, não podemos deixar de nos interrogar sobre o seu estado de saúde, como procurei fazer na Carta encíclica Laudato Si’. A poluição das águas e do ar, a exploração indiscriminada das florestas, a destruição do meio ambiente são, muitas vezes, resultado da indiferença do homem pelos outros, porque tudo está relacionado. E de igual modo o comportamento do homem com os animais influi sobre as suas relações com os outros,[11] para não falar de quem se permite fazer noutros lugares aquilo que não ousa fazer em sua casa.[12]

Nestes e noutros casos, a indiferença provoca sobretudo fechamento e desinteresse, acabando assim por contribuir para a falta de paz com Deus, com o próximo e com a criação.

A paz ameaçada pela indiferença globalizada

4. A indiferença para com Deus supera a esfera íntima e espiritual da pessoa individual e investe a esfera pública e social. Como afirmava Bento XVI, «há uma ligação íntima entre a glorificação de Deus e a paz dos homens na terra».[13] Com efeito, «sem uma abertura ao transcendente, o homem cai como presa fácil do relativismo e, consequentemente, torna-se-lhe difícil agir de acordo com a justiça e comprometer-se pela paz».[14] O esquecimento e a negação de Deus, que induzem o homem a não reconhecer qualquer norma acima de si próprio e a tomar como norma apenas a si mesmo, produziram crueldade e violência sem medida.[15]

Em nível individual e comunitário, a indiferença para com o próximo – filha da indiferença para com Deus – assume as feições da inércia e da apatia, que alimentam a persistência de situações de injustiça e grave desequilíbrio social, as quais podem, por sua vez, levar a conflitos ou de qualquer modo gerar um clima de descontentamento que ameaça desembocar, mais cedo ou mais tarde, em violências e insegurança.

Neste sentido, a indiferença e consequente desinteresse constituem uma grave falta ao dever que cada pessoa tem de contribuir – na medida das suas capacidades e da função que desempenha na sociedade – para o bem comum, especialmente para a paz, que é um dos bens mais preciosos da humanidade.[16]

Depois, quando investe o nível institucional, a indiferença pelo outro, pela sua dignidade, pelos seus direitos fundamentais e pela sua liberdade, de braço dado com uma cultura orientada para o lucro e o hedonismo, favorece e às vezes justifica ações e políticas que acabam por constituir ameaças à paz. Este comportamento de indiferença pode chegar inclusive a justificar algumas políticas econômicas deploráveis, precursoras de injustiças, divisões e violências, que visam a consecução do bem-estar próprio ou o da nação. Com efeito, não é raro que os projetos econômicos e políticos dos homens tenham por finalidade a conquista ou a manutenção do poder e das riquezas, mesmo à custa de espezinhar os direitos e as exigências fundamentais dos outros. Quando as populações veem negados os seus direitos elementares, como o alimento, a água, os cuidados de saúde ou o trabalho, sentem-se tentadas a obtê-los pela força.[17]

Por fim, a indiferença pelo ambiente natural, favorecendo o desflorestamento, a poluição e as catástrofes naturais que desenraizam comunidades inteiras do seu ambiente de vida, constrangendo-as à precariedade e à insegurança, cria novas pobrezas, novas situações de injustiça com consequências muitas vezes desastrosas em termos de segurança e paz social. Quantas guerras foram movidas e quantas ainda serão travadas por causa da falta de recursos ou para responder à demanda insaciável de recursos naturais?[18]

Da indiferença à misericórdia: a conversão do coração

5. Quando, há um ano – na Mensagem para o Dia Mundial da Paz intitulada «já não escravos, mas irmãos» –, evoquei o primeiro ícone bíblico da fraternidade humana, o ícone de Caim e Abel (cf. Gn 4, 1-16), fi-lo para evidenciar o modo como foi traída esta primeira fraternidade. Caim e Abel são irmãos. Provêm ambos do mesmo ventre, são iguais em dignidade e criados à imagem e semelhança de Deus; mas a sua fraternidade de criaturas quebra-se. «Caim não só não suporta o seu irmão Abel, mas mata-o por inveja».[19] E assim o fratricídio torna-se a forma de traição, sendo a rejeição, por parte de Caim, da fraternidade de Abel a primeira ruptura nas relações familiares de fraternidade, solidariedade e respeito mútuo.

Então Deus intervém para chamar o homem à responsabilidade para com o seu semelhante, precisamente como fizera quando Adão e Eva, os primeiros pais, quebraram a comunhão com o Criador. «O Senhor disse a Caim: “Onde está o teu irmão Abel?” Caim respondeu: “Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão?” O Senhor replicou: “Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra até Mim”» (Gn 4, 9-10).

Caim diz que não sabe o que aconteceu ao seu irmão, diz que não é o seu guardião. Não se sente responsável pela sua vida, pelo seu destino. Não se sente envolvido. É-lhe indiferente o seu irmão, apesar de ambos estarem ligados pela origem comum. Que tristeza! Que drama fraterno, familiar, humano! Esta é a primeira manifestação da indiferença entre irmãos. Deus, ao contrário, não é indiferente: o sangue de Abel tem grande valor aos seus olhos e pede contas dele a Caim. Assim, Deus revela-Se, desde o início da humanidade, como Aquele que se interessa pelo destino do homem. Quando, mais tarde, os filhos de Israel se encontram na escravidão do Egito, Deus intervém de novo. Diz a Moisés: «Eu bem vi a opressão do meu povo que está no Egito, e ouvi o seu clamor diante dos seus inspetores; conheço, na verdade, os seus sofrimentos. Desci a fim de o libertar da mão dos egípcios e de o fazer subir desta terra para uma terra boa e espaçosa, para uma terra que mana leite e mel» (Ex 3, 7-8). É importante notar os verbos que descrevem a intervenção de Deus: Ele observa, ouve, conhece, desce, liberta. Deus não é indiferente. Está atento e age.

De igual modo, no seu Filho Jesus, Deus desceu ao meio dos homens, encarnou e mostrou-Se solidário com a humanidade em tudo, exceto no pecado. Jesus identificava-Se com a humanidade: «o primogênito de muitos irmãos» (Rm 8, 29). Não se contentava em ensinar às multidões, mas preocupava-Se com elas, especialmente quando as via famintas (cf. Mc 6, 34-44) ou sem trabalho (cf. Mt 20, 3). O seu olhar não Se fixava apenas nos seres humanos, mas também nos peixes do mar, nas aves do céu, na erva e nas árvores, pequenas e grandes; abraçava a criação inteira. Ele vê sem dúvida, mas não Se limita a isso, pois toca as pessoas, fala com elas, age em seu favor e faz bem a quem precisa. Mais ainda, deixa-Se comover e chora (cf. Jo 11, 33-44). E age para acabar com o sofrimento, a tristeza, a miséria e a morte.

Jesus ensina-nos a ser misericordiosos como o Pai (cf. Lc 6, 36). Na parábola do bom samaritano (cf. Lc 10, 29-37), denuncia a omissão de ajuda numa necessidade urgente dos seus semelhantes: «ao vê-lo, passou adiante» (Lc 10, 32). Ao mesmo tempo, com este exemplo, convida os seus ouvintes, e particularmente os seus discípulos, a aprenderem a parar junto dos sofrimentos deste mundo para os aliviar, junto das feridas dos outros para as tratar com os recursos de que disponham, a começar pelo próprio tempo apesar das muitas ocupações. Na realidade, muitas vezes a indiferença procura pretextos: na observância dos preceitos rituais, na quantidade de coisas que é preciso fazer, nos antagonismos que nos mantêm longe uns dos outros, nos preconceitos de todo o gênero que impedem de nos fazermos próximo.

A misericórdia é o coração de Deus. Por isso deve ser também o coração de todos aqueles que se reconhecem membros da única grande família dos seus filhos; um coração que bate forte onde quer que esteja em jogo a dignidade humana, reflexo do rosto de Deus nas suas criaturas. Jesus adverte-nos: o amor aos outros – estrangeiros, doentes, encarcerados, pessoas sem-abrigo, até inimigos – é a unidade de medida de Deus para julgar as nossas ações. Disso depende o nosso destino eterno. Não é de admirar que o apóstolo Paulo convide os cristãos de Roma a alegrar-se com os que se alegram e a chorar com os que choram (cf. Rm 12, 15), ou recomende aos de Corinto que organizem coletas em sinal de solidariedade com os membros sofredores da Igreja (cf. 1 Cor 16, 2-3). E São João escreve: «Se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu coração, como é que o amor de Deus pode permanecer nele?» (1 Jo 3, 17; cf. Tg 2, 15-16).

É por isso que «é determinante para a Igreja e para a credibilidade do seu anúncio que viva e testemunhe, ela mesma, a misericórdia. A sua linguagem e os seus gestos, para penetrarem no coração das pessoas e desafiá-las a encontrar novamente a estrada para regressar ao Pai, devem irradiar misericórdia. A primeira verdade da Igreja é o amor de Cristo. E, deste amor que vai até ao perdão e ao dom de si mesmo, a Igreja faz-se serva e mediadora junto dos homens. Por isso, onde a Igreja estiver presente, aí deve ser evidente a misericórdia do Pai. Nas nossas paróquias, nas comunidades, nas associações e nos movimentos – em suma, onde houver cristãos –, qualquer pessoa deve poder encontrar um oásis de misericórdia».[20]

Deste modo, também nós somos chamados a fazer do amor, da compaixão, da misericórdia e da solidariedade um verdadeiro programa de vida, um estilo de comportamento nas relações de uns com os outros.[21] Isto requer a conversão do coração, isto é, que a graça de Deus transforme o nosso coração de pedra num coração de carne (cf. Ez 36, 26), capaz de se abrir aos outros com autêntica solidariedade. Com efeito, esta é muito mais do que um «sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas, próximas ou distantes».[22] A solidariedade «é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum, ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos»,[23] porque a compaixão brota da fraternidade.

Assim entendida, a solidariedade constitui a atitude moral e social que melhor dá resposta à tomada de consciência das chagas do nosso tempo e da inegável interdependência que se verifica cada vez mais, especialmente num mundo globalizado, entre a vida do indivíduo e da sua comunidade num determinado lugar e a de outros homens e mulheres no resto do mundo.[24]

Fomentar uma cultura de solidariedade e misericórdia para se vencer a indiferença

6. A solidariedade como virtude moral e comportamento social, fruto da conversão pessoal, requer empenho por parte duma multiplicidade de sujeitos que detêm responsabilidades de carácter educativo e formativo.

Penso em primeiro lugar nas famílias, chamadas a uma missão educativa primária e imprescindível. Constituem o primeiro lugar onde se vivem e transmitem os valores do amor e da fraternidade, da convivência e da partilha, da atenção e do cuidado pelo outro. São também o espaço privilegiado para a transmissão da fé, a começar por aqueles primeiros gestos simples de devoção que as mães ensinam aos filhos.[25]

Quanto aos educadores e formadores que têm a difícil tarefa de educar as crianças e os jovens, na escola ou nos vários centros de agregação infantil e juvenil, devem estar cientes de que a sua responsabilidade envolve as dimensões moral, espiritual e social da pessoa. Os valores da liberdade, respeito mútuo e solidariedade podem ser transmitidos desde a mais tenra idade. Dirigindo-se aos responsáveis das instituições que têm funções educativas, Bento XVI afirmava: «Possa cada ambiente educativo ser lugar de abertura ao transcendente e aos outros; lugar de diálogo, coesão e escuta, onde o jovem se sinta valorizado nas suas capacidades e riquezas interiores e aprenda a apreciar os irmãos. Possa ensinar a saborear a alegria que deriva de viver dia após dia a caridade e a compaixão para com o próximo e de participar ativamente na construção duma sociedade mais humana e fraterna».[26]

Também os agentes culturais e dos meios de comunicação social têm responsabilidades no campo da educação e da formação, especialmente na sociedade atual onde se vai difundindo cada vez mais o acesso a instrumentos de informação e comunicação. Antes de mais nada, é dever deles colocar-se ao serviço da verdade e não de interesses particulares. Com efeito, os meios de comunicação «não só informam, mas também formam o espírito dos seus destinatários e, consequentemente, podem concorrer notavelmente para a educação dos jovens. É importante ter presente a ligação estreitíssima que existe entre educação e comunicação: de fato, a educação realiza-se por meio da comunicação, que influi positiva ou negativamente na formação da pessoa».[27] Os agentes culturais e dos meios de comunicação social deveriam também vigiar por que seja sempre lícito, jurídica e moralmente, o modo como se obtêm e divulgam as informações.

A paz, fruto de uma cultura de solidariedade, misericórdia e compaixão

7. Conscientes da ameaça de uma globalização da indiferença, não podemos deixar de reconhecer que, no cenário acima descrito, inserem-se também numerosas iniciativas e ações positivas que testemunham a compaixão, a misericórdia e a solidariedade de que o homem é capaz.

Quero recordar alguns exemplos de louvável empenho, que demonstram como cada um pode vencer a indiferença, quando opta por não afastar o olhar do seu próximo, e constituem passos salutares no caminho rumo a uma sociedade mais humana.
Há muitas organizações não-governamentais e grupos sócio caritativos, dentro da Igreja e fora dela, cujos membros, por ocasião de epidemias, calamidades ou conflitos armados, enfrentam fadigas e perigos para cuidar dos feridos e doentes e para sepultar os mortos. Ao lado deles, quero mencionar as pessoas e as associações que socorrem os emigrantes que atravessam desertos e sulcam mares à procura de melhores condições de vida. Estas ações são obras de misericórdia corporal e espiritual, sobre as quais seremos julgados no fim da nossa vida.

Penso também nos jornalistas e fotógrafos, que informam a opinião pública sobre as situações difíceis que interpelam as consciências, e naqueles que se comprometem na defesa dos direitos humanos, em particular os direitos das minorias étnicas e religiosas, dos povos indígenas, das mulheres e das crianças, e de quantos vivem em condições de maior vulnerabilidade. Entre eles, contam-se também muitos sacerdotes e missionários que, como bons pastores, permanecem junto dos seus fiéis e apoiam-nos sem olhar a perigos e adversidades, em particular durante os conflitos armados.

Além disso, quantas famílias, no meio de inúmeras dificuldades laborais e sociais, se esforçam concretamente, à custa de muitos sacrifícios, por educar os seus filhos «contra a corrente» nos valores da solidariedade, da compaixão e da fraternidade! Quantas famílias abrem os seus corações e as suas casas a quem está necessitado, como os refugiados e os emigrantes! Quero agradecer de modo particular a todas as pessoas, famílias, paróquias, comunidades religiosas, mosteiros e santuários que responderam prontamente ao meu apelo a acolher uma família de refugiados.[28]

Quero, enfim, mencionar os jovens que se unem para realizar projetos de solidariedade, e todos aqueles que abrem as suas mãos para ajudar o próximo necessitado nas suas cidades, no seu país ou em outras regiões do mundo. Quero agradecer e encorajar todos aqueles que estão empenhados em ações deste gênero, mesmo sem gozar de publicidade: a sua fome e sede de justiça serão saciadas, a sua misericórdia far-lhes-á encontrar misericórdia e, como obreiros da paz, serão chamados filhos de Deus (cf. Mt 5, 6-9).

A paz, sob o signo do Jubileu da Misericórdia

8. No espírito do Jubileu da Misericórdia, cada um é chamado a reconhecer como se manifesta a indiferença na sua vida e a adotar um compromisso concreto que contribua para melhorar a realidade onde vive, a começar pela própria família, a vizinhança ou o ambiente de trabalho.

Também os Estados são chamados a cumprir gestos concretos, atos corajosos a bem das pessoas mais frágeis da sociedade, como os reclusos, os migrantes, os desempregados e os doentes.

Relativamente aos reclusos, urge em muitos casos adotar medidas concretas para melhorar as suas condições de vida nos estabelecimentos prisionais, prestando especial atenção àqueles que estão privados da liberdade à espera de julgamento,[29] tendo em mente a finalidade reabilitativa da sanção penal e avaliando a possibilidade de inserir nas legislações nacionais penas alternativas à detenção carcerária. Neste contexto, desejo renovar às autoridades estatais o apelo a abolir a pena de morte, onde ainda estiver em vigor, e a considerar a possibilidade de uma amnistia.

Quanto aos migrantes, quero dirigir um convite a repensar as legislações sobre as migrações, de modo que sejam animadas pela vontade de dar hospitalidade, no respeito pelos recíprocos deveres e responsabilidades, e possam facilitar a integração dos migrantes. Nesta perspectiva, dever-se-ia prestar especial atenção às condições para conceder a residência aos migrantes, lembrando-se de que a clandestinidade traz consigo o risco de os arrastar para a criminalidade.

Desejo ainda, neste Ano Jubilar, formular um premente apelo aos líderes dos Estados para que realizem gestos concretos a favor dos nossos irmãos e irmãs que sofrem pela falta de trabalho, terra e teto. Penso na criação de empregos dignos para contrastar a chaga social do desemprego, que lesa um grande número de famílias e de jovens e tem consequências gravíssimas no bom andamento da sociedade inteira. A falta de trabalho afeta, fortemente, o sentido de dignidade e de esperança, e só parcialmente é que pode ser compensada pelos subsídios, embora necessários, para os desempregados e suas famílias. Especial atenção deveria ser dedicada às mulheres – ainda discriminadas, infelizmente, no campo laboral – e a algumas categorias de trabalhadores, cujas condições são precárias ou perigosas e cujos salários não são adequados à importância da sua missão social.

Finalmente, quero convidar à realização de ações eficazes para melhorar as condições de vida dos doentes, garantindo a todos o acesso aos cuidados sanitários e aos medicamentos indispensáveis para a vida, incluindo a possibilidade de tratamentos domiciliários.

E, estendendo o olhar para além das próprias fronteiras, os líderes dos Estados são chamados também a renovar as suas relações com os outros povos, permitindo a todos uma efetiva participação e inclusão na vida da comunidade internacional, para que se realize a fraternidade também dentro da família das nações.

Nesta perspectiva, desejo dirigir um tríplice apelo: apelo a abster-se de arrastar os outros povos para conflitos ou guerras que destroem não só as suas riquezas materiais, culturais e sociais, mas também – e por longo tempo – a sua integridade moral e espiritual; apelo ao cancelamento ou gestão sustentável da dívida internacional dos Estados mais pobres; apelo à adopção de políticas de cooperação que, em vez de submeter à ditadura de algumas ideologias, sejam respeitadoras dos valores das populações locais e, de maneira nenhuma, lesem o direito fundamental e inalienável dos nascituros à vida.

Confio estas reflexões, juntamente com os melhores votos para o novo ano, à intercessão de Maria Santíssima, Mãe solícita pelas necessidades da humanidade, para que nos obtenha de seu Filho Jesus, Príncipe da Paz, a satisfação das nossas súplicas e a bênção do nosso compromisso diário por um mundo fraterno e solidário.

Vaticano, no dia da Solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria e da Abertura do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, 8 de Dezembro de 2015.



[Franciscus]

 [1] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 1.

[2] Cf. ibid., 3.

[3] Bula de proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia Misericordiae Vultus, 14-15.

[4] Cf. Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 43.

[5] Cf. ibid., 16.

[6] Carta enc. Populorum progressio, 42.

[7] «A sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos. A razão, por si só, é capaz de ver a igualdade entre os homens e estabelecer uma convivência cívica entre eles, mas não consegue fundar a fraternidade» (Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 19).

[8] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 60.

[9] Cf. ibid., 54.

[10] Mensagem para a Quaresma de 2015.

[11] Cf. Carta enc. Laudato si’, 92.

[12] Cf. ibid., 51.

[13] Discurso por ocasião dos votos de Bom Ano Novo ao Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé, 7 de Janeiro de 2013.

[14] Ibidem.

[15] Cf. Bento XVI, Discurso durante o Dia de reflexão, diálogo e oração pela paz e a justiça no mundo, Assis, 27 de Outubro de 2011.

[16] Cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 217-237.

[17] «Enquanto não se eliminar a exclusão e a desigualdade dentro da sociedade e entre os vários povos será impossível desarreigar a violência. Acusam-se da violência os pobres e as populações mais pobres, mas, sem igualdade de oportunidades, as várias formas de agressão e de guerra encontrarão um terreno fértil que, mais cedo ou mais tarde, há-de provocar a explosão. Quando a sociedade – local, nacional ou mundial – abandona na periferia uma parte de si mesma, não há programas políticos, nem forças da ordem ou serviços secretos que possam garantir indefinidamente a tranquilidade. Isto não acontece apenas porque a desigualdade social provoca a reacção violenta de quantos são excluídos do sistema, mas porque o sistema social e económico é injusto na sua raiz. Assim como o bem tende a difundir-se, assim também o mal consentido, que é a injustiça, tende a expandir a sua força nociva e a minar, silenciosamente, as bases de qualquer sistema político e social, por mais sólido que pareça» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 59).

[18] Cf. Carta enc. Laudato si’, 31; 48.

[19] Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2015, 2.

[20] Bula de proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia Misericordiae Vultus, 12.

[21] Cf. ibid., 13.

[22] João Paulo II, Carta enc. Sollecitudo rei socialis, 38.

[23] Ibidem.

[24] Cf. ibidem.

[25] Cf. Catequese, na Audiência Geral de 7 de Janeiro de 2015.

[26] Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2012, 2.

[27] Ibidem.

[28] Cf. Angelus de 6 de Setembro de 2015.

[29] Cf. Discurso à delegação da Associação Internacional de Direito Penal, 23 de Outubro de 2014.


Fonte: http://www.franciscanos.org.br/

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Especial: O Natal na mística franciscana



Presépio e Eucaristia

A conjunção Belém-Greccio, manjedoura-altar já estava presente na liturgia natalina e também na tradição literário-eclesiástica. De fato, percorrendo o tesouro dos escritos eclesiásticos que nos foram legados pelos séculos anteriores, ficamos impressionados em encontrar repetidas vezes a presença da ligação entre Belém e o altar eucarístico. Como em Belém, assim também Jesus desce entre os homens. Em Belém os pastores trouxeram seus dons. Os fiéis, por sua vez, acorrem com suas ofertas ao altar.

A aproximação entre Belém e eucaristia, aliás, é facilmente intuível. “Belém” significa “casa do pão”. O próprio Jesus se tinha definido como “pão descido do céu”, o “pão da vida”, destinado a nutrir seus fiéis no santo sacrifício. Logo que nasceu foi colocado no presépio, isto é, na manjedoura dos animais. Parece que esta circunstância tenha levado antes de tudo os escritores sacros e os oradores da época a vislumbrar ali uma imagem da eucaristia.

Na liturgia do Natal do assim dito Sacramentário gregoriano anualmente ocorria o seguinte texto: “Este que é o pão dos anjos, no presépio da Igreja se tomou alimento dos animais que crêem”.

De fundamental importância também, porque muito usada, é a glosa ordinária a respeito da Sagrada Escritura (século IX) que, comentando São Lucas, explica: “posto no presépio, isto é, o corpo de Cristo no altar”. Aelredo de Rielvaux (abade cistercense do século XII) escreve: “O presépio de Belém, o altar da Igreja… Não temos nenhum sinal tão grande e evidente do nascimento de Cristo, quanto seu corpo e sangue que diariamente comemos no santo altar. Aquele que uma vez nasceu da Virgem, vemo-lo cotidianamente imolado por nós. Por isso, irmãos, acorramos com presteza ao presépio do Senhor….”. A analogia entre Belém e o altar eucarístico ocorre ainda em outros autores do século XII, como Honório de Autun, Hugo de São Vítor, São Bernardo, Zacarias Crisopolitano, Guarnério de Rochefort, Guerrico de Igny. Este último assim se exprime num sermão natalino: “Irmãos, vós também hoje encontrareis um menino envolto em panos e colocado no presépio do altar”. Pedro de Blois, quase contemporâneo de São Francisco, exprime-se mais ou menos com as mesmas palavras: “Irmãos, embora não sejais pastores, hoje vereis o nosso pequeno, que muitos reis e muitos profetas quiseram ver, havereis de vê-lo colocado no presépio do altar, não em aparência de glória, mas envolto em panos”. A idéia do presépio eucarístico, comum a escritores e oradores daquela época, foi retomada, como é fácil perceber, por miniaturistas e artistas, escultores e pintores. A originalidade de Francisco foi de traduzir de forma plástica, simples e realista, ao alcance de todos, a atualização do mistério do nascimento histórico no mistério sacramental da eucaristia.

Não se pode dizer que, para Francisco bem como para os outros autores citados a esse respeito, a atualização do nascimento de Cristo no mistério da Eucaristia seja entendida em sentido indireto, porque o sacramento da eucaristia atualiza direta e propriamente o sacrifício da cruz e o mistério da ceia.

Texto do “Dicionário Franciscano”, uma publicação da Editora Vozes/Cefepal

Fonte: http://www.franciscanos.org.br

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Franciscano do dia - 17/12 - Bem-aventurado João de Montecorvino


Arcebispo de Pequim, da Primeira Ordem (1244-1328).

  
João de Montecorvino, da Ordem dos Frades Menores (em italiano, Giovanni da Montecorvino) (Montecorvino, 1247 – Pequim, 1328) foi um missionário italiano, considerado o primeiro apóstolo da China. Foi o primeiro arcebispo do Oriente, tendo sido investido como Arcebispo de Khanbaliq e Patriarca de Todo o Oriente. Atualmente, é venerado como um beato da Igreja Católica.

Em 1279, foi enviado à Armênia, Pérsia e Oriente Médio, junto com outros franciscanos. Em 1289, retornou para a Itália, tendo realizado poucas conversões. Em 1286, Arghun Khan pediu, por meio do bispo Nestoriano Rabban Bar Sauma, que o Papa Honório IV enviasse missionários para a China, para a corte de Kublai Khan, que era um simpatizante do cristianismo. 

Montecorvino foi enviado para Khanbaliq, onde atualmente está Pequim, na mesma época que Marco Polo.

Viajou com cartas ao Arghun Khan, para o grande imperador Kublai Khan, para Kaidu, Príncipe dos Tártaros, ao rei da Armênia e ao Patriarca dos Jacobitas. Nessa viagem, foram seus companheiros o dominicano Nicolau de Pistóia e o comerciante Pedro de Lucalongo. Ele chegou a Tabriz (no Azerbaijão Iraniano), a principal cidade da Pérsia Mongol, se não de toda a Ásia Ocidental.

Dali, partiram por mar para Madras, na baía de Bengala, na Índia, onde já havia os Cristãos de São Tomé. Ali, Nicolau de Pistóia veio a falecer. Em 1291 ou 1292, escreveu para sua família. Passando por São Tomé de Meliapor, chegaria à China em 1294. Chegou na mesma época da morte de Kublai Khan, tendo Temur Khan assumido o trono. Apesar da mudança de governante, não houve oposição do novo Khan quanto às conversões, mas os Nestorianos mostraram-se descontentes. Foi auxiliado na sua obra de evangelização por Arnaldo da Colônia, frade alemão que a ele se reuniu em 1303.

Em 1299, Montecorvino construiu a primeira igreja em Khanbaliq, e em 1305 a segunda, em frente ao palácio Imperial. Nessa época, treinou cerca de cento e cinquenta meninos entre sete e onze anos em latim e grego, além de ensinar salmos e hinos, para formar um coral. Ao mesmo tempo, foi se familiarizando com a língua chinesa. Dessa forma, traduziu para essa língua os salmos e o Novo Testamento. Montecorvino converteu um príncipe nestoriano de nome Jorge, seguidor de Preste João, vassalo do Grande Khan e mencionado por Marco Polo.

João escreveu cartas em 8 de janeiro de 1305 e em 13 de fevereiro de 1306, descrevendo o progresso da missão católica no Extremo Oriente, apesar da oposição Nestoriana; fazendo alusão à comunidade católica fundada por ele na Índia; de um recurso recebido para evangelizar no Reino da Etiópia e ajudar a delinear rotas por terra e mar para “Catai” (o nome dado na altura para o norte da China).

Em 1307, o Papa Clemente V, extremamente satisfeito com o sucesso do missionário, enviou sete bispos franciscanos consagrados para ajudar-lhe na evangelização dos chineses, tendo ordenado João como Arcebispo de Khanbaliq e Patriarca de Todo o Oriente. Destes bispos enviados, apenas três chegaram a salvo na região. Em 1312, mais três bispos franciscanos foram enviados, mas apenas um chegou à Ásia Oriental.

Durante os 20 anos seguintes, a missão continuaria com êxito. Segundo a tradição, Montecorvino teria convertido o Grande Khan Khaishan Kuluk (terceiro governante Yuan, 1307 – 1311). Conseguiu grande êxito na evangelização no Norte e no Leste da China. Além de três igrejas na região de Pequim, ainda estabeleceria missões em Formosa e no porto de Amoy.

Ele traduziu o Novo Testamento para o uigur, além da providenciar cópias de salmos, breviários e hinos para os Öngüt. Ele foi fundamental para o ensino do Latim naquela região, além da formação de coros religiosos, na esperança de que algum daqueles meninos se tornasse padre.

Quando João de Montecorvino morreu em 1328, foi reverenciado como santo (não canonizado). Ele era aparentemente o único bispo medieval europeu trabalhando em Pequim. Mesmo após sua morte, a Missão da China durou mais quarenta anos. Teve um funeral solene, assistido por uma multidão de cristãos e não-cristãos.

Uma embaixada para o Papa Bento XII em Avinhão foi enviada por Toghun Temur, o último imperador mongol da China (dinastia Yuan), em 1336. A embaixada foi liderada por um genovês a serviço do imperador mongol, Andrea di Nascio, e acompanhado por um outro genovês, Andalò di Savignone. Estas cartas da representação do governante mongol, reclamavam da falta de um guia espiritual havia oito anos, desde a morte de Montecorvino e desejaria ardentemente ter um. O Papa respondeu às cartas, e designou quatro eclesiásticos como seu legados para a Corte Khan. Em 1338, um total de 50 eclesiásticos foram enviados pelo Papa para Pequim, entre os quais João de Marignolli. Em 1368, é implantada a Dinastia Ming e os mongóis são expulsos da China. Até 1369 todos os cristãos, quer sejam católicos romanos ou nestorianos, foram expulsos pela Dinastia Ming.

Seis séculos mais tarde, Montecorvino inspirou um outro franciscano, o Venerável Gabriele Allegra, para ir para a China e completar a primeira tradução da Bíblia católica inteira para a língua chinesa em 1968.
Hoje, a evangelização na China é transmitida através das atividades sociais e caritativas, nas quais o testemunho silencioso, mas vivo, de tantos religiosos, se faz mensagem dos valores do Evangelho de Jesus Cristo.

Também pede compromisso o acompanhamento e a formação dos franciscanos na China, onde estão presentes várias congregações femininas e ao menos quatro mil membros da Ordem Franciscana Secular.

Fonte: “Santos Franciscanos para cada dia”, Ed. Porziuncola

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

PROFECIA DA FAMÍLIA FRANCISCANA DO BRASIL - IX


3. A FAMÍLIA FRANCISCANA E SEU MODO PROFÉTICO DE SER RESPONSÁVEL

Reflexão de Frei Vitório Mazzuco Filho


O que é ser responsável? Na raiz da palavra responsabilidade está o latim medieval: “spons”, que significa: assumir em vista de uma profunda união. É um esponsal místico com a vida. É profético casar com os projetos, casar com as verdadeiras escolhas. Casar com aquilo que está em minha alma. Amar a fonte e a raiz e encontrar-se com elas. Sem a fonte e a raiz não somos nada. Isto está na base de todos os pactos, de todos os comprometimentos, de todas as alianças. De “spons” vem resposta e responsabilidade. Na Idade Média havia uma mística que movia as ações: “Tuum semper videns principium!” = ver sempre o teu princípio!  Em Clara de Assis isto é dizer: “Não perca de vista seu ponto de partida!”

Ser responsável é dar-se por inteiro. Quando você se entrega por inteiro não sobra nada. Dá tudo como princípio da Pobreza. Você não é uma migalha. Quando se dá tudo torna-se totalmente livre, por isto responsabilidade e liberdade não se separam. “Spons” é  união profunda e duradoura; é corresponder continuamente a um compromisso assumido e não perder de vista que o laço que se quer assumir é a transformação da vida e da história por Amor. “Spons” é encantamento! Sem enamoramento não conseguimos viver!

Esta é a profética responsabilidade de criar uma nova identidade: ser sempre protagonista do Reino, tempo de transformação, é chegada a hora e é agora! Ser sujeito livre e responsável. O que isto significa?  Ser fiel ao que se acredita sem a mediação do mercado que não tem pátria e nem fidelidade. O mercado roubou até a alma da religião e fez dela a sua alma, por isso a nossa sociedade está encharcada de religião sem alma. Ser responsável é ser agente de mudanças e isto significa entrar numa forte espiritualidade. Não posso perder o sagrado que existe em mim! Empresas e instituições não podem sufocar a minha liberdade e responsabilidade, nem minha libido. Eu amo e isto é tudo! Faço por amor e não quero que nenhum sistema me adoeça. Vou usar bem o meu tempo e não deixar que ele faça um embotamento de experiências. Não se pode viver a descartabilidade de relações. Nem um envelhecimento precoce. Não somos mercadoria que vem com prazo de validade.

Continua...

Fonte: Blog Carisma Franciscano de Frei Vitório

Link - http://carismafranciscano.blogspot.com.br/

Franciscano do dia - 11/12 - Beato Hugolino Magalotti




Ermitão, Terceira Ordem (+ 1373)
Aprovou seu culto Pio IX em 4 de outubro de 1856.


Hugolino Magalotti nasceu em Camerino, nas Marcas, de uma antiga e nobre família. Em pequenino ficou órfão, primeiro de mãe e depois também de pai. Na juventude sentia gosto por obras de piedade e leitura de livros santos. Integrado na Ordem Franciscana Secular, distribuiu pelos pobres todos os seus haveres e foi viver para um eremitério.

Na sua vida solitária foi provado por violentas tentações e aparições monstruosas. Mais aflitiva para ele foi a fama resultante dos milagres, a ponto de várias vezes se ver obrigado a mudar de poiso para se livrar do contínuo assédio dos curiosos. De vez em quando ia a um mosteiro próximo para receber os sacramentos. Tinha por leito habitual uma simples tábua, sobre a qual fazia o seu descanso.

Desde os primeiros anos da sua vida eremítica foi celebrado e venerado por graças que obtinha de Deus. Pedro de Brunfort, paralítico desde infância, com extrema dificuldade conseguiu aproximar-se dele, e foi por ele instantaneamente curado com uma simples benção. E uma pobre mulher, atormentada por terríveis dores e convulsões, foi levada junto do eremita, que rezou por ela e a libertou de todos os sofrimentos. E muitas outras pessoas, de todas as condições, em especial doentes da alma ou do corpo, iam ter com ele para ouvirem a sua palavra inspirada, para se encomendarem às suas orações ou pedirem ajuda para as necessidades.

No intuito de evitar tais peregrinações que dificultavam a sua união com Deus, Hugolino resolveu escolher outro eremitério. Foi para o lado oposto do mesmo monte, para um sítio rodeado de penedos e de faias muito antigas. Aí pôde intensificar as formas de penitência e de meditação. Não pôde porém, evitar assaltos por parte do demônio, que uma noite tentou mesmo tirá-lo à força para o eremitério.

Por outro lado, novas peregrinações de pessoas devotas acudiam a ele, a fim de obterem alívio para as mais diversas necessidades, tanto espirituais como materiais. São célebres alguns prodígios por ele realizados neste novo eremitério, como o de por meio da oração fazer brotar uma nascente de água cristalina que ainda hoje é recolhida e usada com devoção por muitos crentes.

Desgastado por abstinências e penitências e pelo peso dos anos, sentiu que não tardaria a soar a sua última hora, e preparou-se para a visita da irmã morte, recebendo com devoção os sacramentos. Carinhosamente assistido por alguns devotos e por um sacerdote do mosteiro próximo, reclinado sobre a tábua nua que durante muitos anos lhe servira de leito, entregou a alma a Deus, no dia 11 de dezembro de 1373.

Fonte: “Santos Franciscanos para cada dia”, Ed. Porziuncola

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Papa abre a Porta Santa; começa o Jubileu da Misericórdia



Cidade do Vaticano  – “Atravessar hoje a Porta Santa nos compromete a adotar a misericórdia do bom samaritano”: este é o espírito com o qual se deve viver o Jubileu Extraordinário, conforme disse o Papa Francisco na missa celebrada por ocasião da Festa da Imaculada Conceição (08/12), na Praça S. Pedro.


Com a cidade de Roma blindada e um forte aparato de segurança, com três mil agentes nas ruas da capital, o afluxo de peregrinos começou na madrugada nos arredores da Praça, que foi aberta às 6h30. Os controles policiais, com a passagem pelo detector de metais, tardaram o ingresso dos fiéis.  Cerca de 50 mil pessoas participaram da celebração.

Pecado e graça

Na homilia que antecedeu a abertura da Porta Santa, o Pontífice recordou o mesmo gesto realizado em Bangui (Rep. Centro-Africana) e ressaltou a primazia da graça: “A festa da Imaculada Conceição exprime a grandeza do amor divino. Deus não é apenas Aquele que perdoa o pecado, mas, em Maria, chega até a evitar a culpa original, que todo o homem traz consigo ao entrar neste mundo. É o amor de Deus que evita, antecipa e salva”.

A própria história do pecado só é compreensível à luz do amor que perdoa, explicou o Papa. “Se tudo permanecesse relegado ao pecado, seríamos os mais desesperados entre as criaturas. A promessa da vitória do amor de Cristo encerra tudo na misericórdia do Pai.”

Também este Ano Santo Extraordinário é dom de graça, prosseguiu Francisco. “Entrar por aquela Porta significa descobrir a profundidade da misericórdia do Pai que a todos acolhe e vai pessoalmente ao encontro de cada um. É Ele que nos procura, que vem ao nosso encontro. Neste Ano, deveremos crescer na convicção da misericórdia.”

Para o Pontífice, é preciso antepor a misericórdia ao julgamento, se quisermos ser justos com Deus. “Ponhamos de lado qualquer forma de medo e temor, porque não corresponde a quem é amado; vivamos, antes, a alegria do encontro com a graça que tudo transforma”, exortou.

Concílio Vaticano II

Em sua homilia, o Papa fez um paralelo com outra porta “escancarada” 50 anos atrás pelos Padres conciliares. O Concílio, afirmou, foi primariamente um encontro; um encontro entre a Igreja e os homens do nosso tempo.

“Trata-se, pois, de um impulso missionário que, depois destas décadas, retomamos com a mesma força e o mesmo entusiasmo. O Jubileu exorta-nos a esta abertura e obriga-nos a não transcurar o espírito que surgiu do Vaticano II, o do Samaritano, como recordou o Beato Paulo VI na conclusão do Concílio. Atravessar hoje a Porta Santa compromete-nos a adotar a misericórdia do bom samaritano.”

Porta Santa

Após a comunhão, teve início o rito de abertura da Porta Santa, na entrada da Basílica de S. Pedro. O diácono convidou os fiéis para a inauguração do Jubileu Extraordinário da Misericórdia com estas palavras: “Abre-se diante de nós a Porta Santa. É o próprio Cristo que, através do mistério da Igreja, nos introduz no consolador mistério do amor de Deus".

Em procissão, os concelebrantes se posicionaram na entrada da Basílica. Também estava presente o Papa Bento XVI. Diante da Porta Santa, o Pontífice fez uma oração e recitou a seguinte fórmula: “Esta é a porta do Senhor. Abri-me as portas da justiça. Por tua grande misericórdia entrarei em tua casa, Senhor”.


O Santo Padre abriu a Porta Santa e se deteve em silêncio em sua entrada. Francisco entrou por primeiro na Basílica de S. Pedro, seguido por Bento XVI, pelos concelebrantes e por alguns representantes de religiosos e fiéis leigos – momento em que foi entoado o Hino do Ano Santo da Misericórdia. No Altar da Confissão, o Papa fez uma oração e concendeu a todos a sua bênção apostólica.

Fonte: http://br.radiovaticana.va/

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

A manifestação acabada da misericórdia do Pai.



Frei Almir Guimarães. 

Nós, discípulos de Cristo vivo e ressuscitado, presente nas esquinas de nossas existências e nos albergues onde costumamos nos recolher, experimentamos alegria em refletir sobre a bondade do Senhor que é manifestação da misericórdia do Pai. Esta aparece de modo eloquente no Coração aberto do Redentor. Cada primeira sexta-feira é instante de agradecimento e meditação.

O Papa Francisco, propondo o ano da misericórdia, escreve: “A misericórdia de Deus é a sua responsabilidade por nós. Ele sente-se responsável, isto é, deseja o nosso bem e quer ver-nos felizes, cheios de alegria e serenos. E, em sintonia com isto, se deve orientar o amor misericordioso dos cristãos. Tal como ama o Pai, assim também amam os filhos. Tal como ele é misericordioso, assim somos chamados também nós a ser misericordiosos uns para com os outros” (Misericordiae vultus, n.9). Ora, Jesus é a manifestação acabada da misericórdia do Pai.

Nunca refletiremos o suficiente sobre os instantes finais da vida de Cristo onde tudo é misericórdia. Sirvam as palavras de João Crisóstomo de matéria para nossa meditação: “A paz do céu é entregue pelo beijo de um traidor, prende-se aquele que rege o universo, algema-se o elo de toda a criação, arrasta-se aquele que atrai o mundo inteiro, a verdade é acusada pela mentira, faz-se comparecer a juízo aquele diante de quem todas as coisas se curvam. Os judeus o entregam aos pagãos, os pagãos o devolvem aos judeus; Pilatos o envia a Herodes, Herodes o devolve a Pilatos. A piedade torna-se comércio de impiedade, a santidade é objeto de negócio cruel. A bondade é flagelada, o perdão condenado, a majestade escarnecida, a virtude ridicularizada. Sobre o dispensador das chuvas, 
chovem os escarros. 

Pregos de ferro cravam aquele que estende os céus. Aquele que dá o mel é alimentado pelo fel; o que faz correr as fontes é saciado pelo vinagre e, ao se esgotarem todas as penas, a morte se afasta, a morte tarda, por compreender que ai nada há para ela” (Lecionário Monástico II, p. 486).

Sobre o dispensador das chuvas, chovem os escarros…

Fonte: http://www.franciscanos.org.br

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

PROFECIA DA FAMÍLIA FRANCISCANA DO BRASIL - VIII



“Ser livre. Não dá para vender Clara e Francisco. "

Reflexão de Frei Vitório Mazzuco Filho


Ser livre é abraçar as causas propostas por esta Assembleia Geral Ordinária. A Família Franciscana do Brasil ajuda a pensar uma existência franciscana e clariana no mundo; a trabalhar em comum. Nós precisamos da força de muitos e muitas para nos achar em meio a tudo isto. Precisamos da força de todos para reconstruir a transformação da intimidade e da subjetividade. Em que consiste ser humano? É a decisão de ser melhor entre os melhores, de ser mais em meio à mediocridade. É uma decisão de moldar uma nova identidade como vimos acima. Toda decisão tem uma cisão, comporta uma ruptura. Francisco disse que isso é conversão, Clara também: para eles conversão é mudar de mentalidade e mudar de lugar!

Neste sentido vamos aprender com os nossos pais fundadores. Nós fazemos cálculos, eles faziam sonhos. Nós fazemos terapias, elas faziam estrada e abriam caminhos de ver mais profundamente. Nós não abraçamos muito o passado, mas eles são medievais que permanecem como uma eterna provocação para ser;  para serem confrontados como modelos necessários, e não apenas serem usados pelo estereótipo. O moderno recicla o medieval e vende segundo o seu interesse. Não dá para vender Clara e Francisco, pois eles romperam com isto. Por isto vão estar sempre cutucando nossas estruturas.

Ser livre é ser simples. É guardar a força e a visão da decisão, da compaixão, pelo caminho da cordialidade e da simplicidade. O coração é o ser humano inteiro. O simples é inteiro. O complicado aumenta suportes. Francisco saiu da tutela da casa de Pedro Bernardone e Clara saiu da tutela da  casa de Offreducci Favaroni porque não queriam produzir riquezas, queriam produzir sonhos de uma vida mais simples e livre.

Continua...

Fonte: Blog de Frei Vitório


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sábado, 28 de novembro de 2015

Santo franciscano do dia - 28/11 - São Tiago das Marcas


Sacerdote da Primeira Ordem (1391-1476). Canonizado por Bento XIII no dia 10 de dezembro de 1726.


Em conjunto com João de Capistrano, Bernardino de Sena e Alberto de Sarteano, Tiago das Marcas é uma das colunas da Observância Franciscana, a singular reforma da Ordem no século XV, que, opondo-se a um humanismo exagerado, propôs o retorno à vida pobre e simples e ao zelo apostólico que caracterizou o franciscanismo primitivo.

Nascido em 1391 em Montprandone (Piceno), desde muito novo se sentiu atraído pelo ideal franciscano, e vestiu o hábito dos frades menores no convento dos Cárceres, perto de Assis. Era tão propenso à mortificação, que o seu mestre de teologia e de vida espiritual, São Bernardino de Sena, teve de lhe recomendar certa moderação. Dotado de excepcionais dotes oratórios, uma vez ordenado sacerdote percorreu a Itália e grande parte da Europa a pregar a fiéis, hereges e infiéis, com abundantes frutos de conversão e reforma de costumes.

Recusou a oferta do arcebispado de Milão e foi conselheiro de papas e imperadores. Esteve ao serviço da santa Sé em numerosas missões, e sucedeu a São João de Capistrano como guia espiritual da cruzada contra os turcos.

Sendo um pregador de raras qualidades, exerceu essa forma de apostolado não apenas na Itália, mas ainda em países estrangeiros, como a Bósnia, a Boêmia e a Polônia. Estava em meio duma refeição quando lhe chegou às mãos a ordem papal de partir para a Hungria. Levantou-se imediatamente, sem acabar de comer, para cumprir a ordem recebida. Era assim a sua obediência, absoluta e instantânea.

Levava uma vida de rigor e austeridade. Durante o ano fazia nada menos de sete quaresmas, e nos outros dias a sua alimentação limitava-se a pequenas e pobres rações, como uma malga de favas simplesmente cozidas em água. O seu zelo pela castidade levava-o a disciplinar-se por vezes de noite, ao ser atormentado por tentações carnais. Enfermiço e debilitado pelos jejuns, por seis vezes recebeu a Unção dos Enfermos. Apesar disso resistiu até aos 80 anos na fatigante vida de pregador volante.

Os temas de sua pregação eram idênticos aos de São Bernardino, cauterizando em especial a avareza e a usura. Para combater esta praga social idealizou os Montes de Piedade ou Montepios, onde os pobres podiam empenhar os seus bens por um preço justo e com juros mínimos, ao contrário do que faziam os usuários privados.

No dia 28 de novembro de 1476, com 85 anos de idade, faleceu em Nápoles, onde se conservam os seus restos mortais na igreja de Santa Maria Nova. Apaixonado pelo estudo, traduziu muitas obras e compôs algumas de sua autoria, as quais nos permitem ter um conhecimento profundo da sua vida, da sua espiritualidade e da sua ação apostólica.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

PROFECIA DA FAMÍLIA FRANCISCANA DO BRASIL - VII



“Ser livre é libertar-se das tutelas do medo”. Continuação do texto.

Reflexão de Frei Vitório Mazzuco Filho

Ser livre é a libertação de todo tipo de tutela; a tutela é a canga que colocam sobre nós. São algumas tradições que não servem mais e precisam ser revistas. É ter a coragem de em meio a escombros:  RECONSTRUIR A CASA! (3Comp 5). Ser livre é saber que a nossa história não é um amontoar-se de ruínas. Ser livre é libertar-se das tutelas do medo. Viver com medo é ser escravo. Esta não é uma frase terapêutica, mas a decisão de tomar a vida nas mãos e voltar a moldar um humano forte. Uma vida com medo é uma vida desumanizada. O amedrontamento cria peso estruturais e agressividade. Ao reagir ao medo, reage-se de forma violenta. A nossa civilização é especialista em produzir medo, por isso a nossa liberdade perdeu a sua pureza. As indústrias de segurança nunca ganharam tanto dinheiro! Em meio a tudo isto é profético perguntar: Quem vive? Quem é o humano? Não podemos nos apequenar, não podemos ser marionetes de uma história assim.

Ser livre é saber que Deus não nos quer punir. Ter fé é a coragem de abrir caminhos de liberdade. A fé abre caminhos onde não existem caminhos. Só a fé pode nos libertar do medo. Não podemos manipular a vontade de Deus sob o domínio da vontade própria ou no que dizem sacerdotes e pastores. Ser livre é recuperar a confiança perdida e acreditar na atuação de Deus na história através do grupo forte que nós somos. Temos que nos libertar das tutelas de certas manipulações religiosas que ainda decidem quem vai para o céu ou para o inferno, quem são os eleitos ou quem são os condenados. Vamos abraçar mais a fé! “Vai, tua fé te salvou!”. Todos temos uma fé e uma força que nos salva. Os olhos tem que ver coisas que jamais viram. O vigor, a energia e a ternura é o modo de ser de nossa fé. Naquilo que acreditamos é que somos fortes!

Ser livre é libertar-se da tutela do poder político que perdeu a moral, a ética e a credibilidade, porque é o primeiro a se corromper pelo capital. A política é serva do capital. Ser livres diante do excesso de leis e direitos que querem ser a base para recompensar ou punir. Ser livre é não delegar a nossa vida à condução das tutelas. Temos que ter mais coragem de usar a própria razão, desde que ela seja bem formada. Os sonhos ainda valem muito! Como eu faço para formar olhos bons para ver a vida do jeito bom de Francisco e Clara? Como eu faço para viver melhor? Como transformar o acúmulo de informações em sabedoria? Como sair da covardia de ser, que as vezes confundimos como obediência?

Continua...

Fonte: Blog do Frei Vitório
Link: http://carismafranciscano.blogspot.com.br/

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Santo Franciscano do dia - 26/11 - São Leonardo de Porto Maurício


Sacerdote da Primeira Ordem (1676-1751). Canonizado por Pio IX no dia 29 de junho de 1867.


São Leonardo foi proclamado pela Igreja como Padroeiro das missões entre fiéis, pela orientação particular que deu ao seu apostolado e pela amplidão da sua obra missionária, que se estendeu a todas as cidades da península itálica. Nasceu em Porto Maurício, na Ligúria, e frequentou em Roma o colégio gregoriano. Entrou ainda jovem na ordem dos frades menores, e desde o noviciado propôs imitar o mais fielmente possível a vida de São Francisco. Veio a conseguir o seu intento, sobretudo na penitência, que raiava pelo heroísmo, na altíssima contemplação e no zelo apostólico.

Ordenado sacerdote, dedicou-se por mais de 40 anos à pregação, com grande proveito para os fiéis, escolhendo como temas as mais importantes verdades cristãs, seguindo também  neste pormenor a exortação de São Francisco.

A simples apresentação da sua figura já constituía um bom princípio de pregação: austero, magro, ardente de fé e de amor. O seu estilo retórico, em conformidade com o costume da época valia-se de sinais exteriores destinados a causar impacto e mover à contrição e às lágrimas, apelando à sensibilidade. Neste clima se situa a grande devoção da Via Sacra, de que foi eminente divulgador. Deixou algumas obras escritas, desde simples esboços até tratados de ascética e de pregação.

A pregação de São Leonardo caracterizava-se por algo de dramático e até trágico. Multidões imensas acorriam a escutá-lo, e ficavam impressionadas pela sua palavra ardente, convidando à penitência e à piedade cristã. Dizia dele Santo Afonso Maria de Ligório, que era “o maior missionário do século”. Não era raro durante a sua pregação o auditório inteiro prorromper em pranto e em soluços. Pregou por toda a Itália, mas a região favorita foi a Toscana, por causa do jansenismo, que ele se propôs combater com todo o empenho, abordando para isso os temas que lhe pareceram mais eficazes: o nome de Jesus, a Virgem Maria e a Via Sacra. Quando ele fazia uma missão na Córsega, os bandidos desta atormentada ilha deram tiros para o ar gritando: “Viva Frei Leonardo! Viva a Paz!”.

Bastante desgastado pelos constantes trabalhos apostólicos, foi chamado a Roma, onde, em apaixonados sermões a que o próprio papa por vezes assistia, preparou o clima espiritual para o jubileu de 1750. Foi nessa altura que erigiu a Via Sacra no Coliseu, declarando sagrado aquele lugar onde muitos mártires tinham vertido o sangue por Cristo. No ano seguinte ainda se deslocou à região de Bolonha, para as suas últimas pregações.

Regressando a Roma, ao convento de São Boaventura no Palatino, a 26 de novembro, com 75 anos de idade, terminou a carreira terrena este incomparável missionário do povo cristão. As autoridades tiveram de recorrer às forças de segurança para controlarem a multidão dos devotos que queriam ver o Santo e levar relíquias dele. Foi a respeito dele que disse o papa Lambertini: “Perdemos um amigo na terra, mas ganhamos um Santo no céu”.

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

A centralidade de Cristo na Vida de São Francisco de Assis



Frei Régis Daher

Introdução

Da vida e do modo de ser de São Francisco nasceu uma inspiração de vida, um caminho. A espiritualidade franciscana é fundamentalmente seguimento de Cristo, pobre, humilde e crucificado. E o seguimento torna-se um encantamento, que por sua vez leva à configuração com o Cristo.

1. A experiência do seguimento que São Francisco faz não segue uma ordem cronológica da vida de Cristo (nascimento, vida adulta, paixão e morte), mas é uma descoberta gradativa do único e mesmo mistério de Cristo, revelação do amor e da misericórdia de Deus para com a humanidade.

2. Assim, ao longo de sua vida, Francisco descobre e experimenta a pessoa e o mistério de Cristo nas suas três dimensões, inspirando nele três atitudes:

a pobreza da encarnação: o seguimento;
a humildade da eucaristia: o encantamento;
e a doação total da paixão e cruz: a configuração.

3. De outro modo, poderíamos dizer que a experiência cristológica de Francisco tem um começo (a encarnação), um meio (a eucaristia) e um fim (a cruz), não porém, numa ordem cronológica mas numa ordem espiritual.

4. Na experiência pessoal de Francisco, a cruz está no início (São Damião e o leproso) e no fim (as chagas e o Monte Alverne); no ‘meio’ está a encarnação (Greccio) e a eucaristia.

5. A ENCARNAÇÃO - São Francisco descobre a pobreza do Filho de Deus e de sua Mãe, como condição para se fazer um de nós:
“Quero evocar a lembrança do Menino que nasceu em Belém e todos os incômodos que sofreu desde a sua infância; quero vê-lo tal qual ele era, deitado numa manjedoura e dormindo sobre o feno, entre um boi e um burro” (1Cel, 84).

“Se o Filho de Deus desceu da grande altura que separa o seio do Pai de nossa abjeção, foi para nos ensinar a humildade, Ele, o Senhor e Mestre, pela palavra e pelo exemplo” (LM 6,1).

Quando São Francisco de Assis, em sua intuição original recriou no presépio de Greccio, a expressão poética do natal, desejava experimentar e reviver na própria carne, o mistério e o encantamento, o amor e a dor, a contradição da glória divina revelada na pobreza do Filho de Deus. Desde então, compor um presépio com figuras e materiais comuns e ordinários, tornou-se um ato de fé, vislumbrando a presença do Deus encarnado em tudo aquilo que constitui a vida. Para contemplar o presépio e nele descobrir a revelação divina no cotidiano humano, há uma condição: é preciso mudar o coração e o olhar, porque o mundo tornou-se presépio.

6. A EUCARISTIA - São Francisco experimenta o encantamento pela presença real de Cristo na eucaristia, como encarnação (presépio) repetida e permanente no meio de nós:

“Pasme o homem todo, estremeça a terra inteira, rejubile o céu em altas vozes quando sobre o altar, estiver nas mãos do sacerdote o Cristo, Filho de Deus vivo! Ó grandeza maravilhosa, ó admirável condescendência! Ó humildade sublime, ó humilde sublimidade! O Senhor do universo, Deus e Filho de Deus, se humilha a ponto de se esconder, para nosso bem, na modesta aparência do pão. Vede, irmãos, que humildade a de Deus! Derramai ante Ele os vosso corações! Humilhai-vos para que Ele vos exalte! Portanto, nada de vós retenhais para vós mesmos, para que totalmente vos receba quem totalmente se vos dá!” (C.tOrdem, 26-29).

Atitude eucarística = resposta de vida.

7. A CRUZ - As chagas de São Francisco não é ponto de ‘chegada’, o fim de sua vida, antes é sinal da configuração vivida ao longo de toda a sua vida. É o mesmo mistério de amor da encarnação e da eucaristia:

” Ó Senhor, meu Jesus Cristo, duas graças eu te peço que me faças antes de eu morrer: a primeira é que, em vida, eu sinta na alma e no corpo, tanto quanto possível, aquelas dores que tu, doce Jesus, suportaste na hora da tua dolorosa Paixão. A segundo, é que eu sinta, no meu coração, tanto quanto possível, aquele excessivo amor, do qual tu, Filho de Deus, estavas inflamado, para voluntariamente suportar uma tal paixão por nós pecadores” (3ª Cons.Estigmas).

“Francisco já tinha morrido para o mundo, mas Cristo estava vivo nele. As delícias do mundo eram uma cruz para ele, porque levava a cruz enraizada em seu coração. Por isso fulgiam exteriormente em sua carne os estigmas, cuja raiz tinha penetrado profundamente em seu coração” (2Cel 211).

 O primeiro significado das chagas: significam que Deus é Senhor de sua vida. Deus encontrou nele a plena abertura e a máxima liberdade para sua presença.

O segundo significado das chagas é o de que Deus não é alienação para o ser humano, ao contrário, é sua plena realização e salvação.

● O terceiro significado: as chagas expressam que a vivência concreta do amor deixa marcas. A exemplo de Cristo, Francisco quis suportar/carregar e amar os irmãos para além do bem e do mal (amor incondicional). As chagas não vêm de fora, nascem dentro da vida (corpo e alma).

● O quarto significado: seguir o Cristo implica em morrer um pouco a cada dia: “Quem quiser ser meu discípulo, tome a sua cruz a cada dia e me siga” (Lc 9,23).

8. A EXPERIÊNCIA DO ‘PEREGRINO PASCAL’

Foi depois de um longo caminho de purificação interior, de renúncia, de integração, que Francisco tornou-se um homem reconciliado. É romantismo e ilusão imitar São Francisco sem, no entanto, abraçar a renúncia, a pobreza, a cruz. É pura fantasia começar onde ele terminou. A vida toda de Francisco foi um reconciliar-se contínuo com todas as dimensões da existência: a interior (consigo mesmo), a superior (com Deus), e a exterior (com a natureza).

a) A reconciliação consigo mesmo

Num determinado momento de sua juventude, Francisco converteu-se. Houve uma “virada” no seu modo de ser, de comportar-se, de relacionar-se. Aconteceu uma ruptura e iniciou um pesado processo de purificação interior: vigílias, jejuns, penitências, privações, e o encontro com o leproso. Ele abraça e ama alegremente o próprio negativo, vencendo o diabólico em si mesmo. Enfrenta o mal na sua fonte, o próprio coração, integrando-o em vez de negá-lo.

b) A reconciliação com Deus

Francisco fez uma profunda experiência de Deus (cf. a oração Louvores a Deus). Descobriu que a misericórdia de Deus é infinitamente maior que todos os nossos pecados, porque seu amor é maior que o nosso coração (Lc 6,35). Deus não se deixa vencer por nossos pecados. Por isso, quando o pecado é assumido na humildade e simplicidade, torna-se caminho de encontro com Deus.

c) A reconciliação com a natureza

Deste mergulho no mistério de Deus, Francisco descobriu a fonte de tudo e sentiu ligado à todas as coisas e pessoas, porque elas não estão jogadas aí, alcance da mão do homem. Ele não se coloca sobre as coisas, mas junto delas, como irmão na mesma casa.

Colocando-se no mesmo nível das criaturas, Francisco não se define pela diferença com elas, mas pelo que tem em comum. Desse modo de ser é que nasce a sua pobreza. Ele deixa as coisas serem, renuncia a dominá-las e submetê-las, ou usá-las como objetos de posse e poder. Pobre, se sentia livre e fraterno para comungar com todas as coisas, porque não tinha mais o que perder.

d) A reconciliação com os outros – a perfeita alegria

Francisco não espera pela mudança dos outros. Começa por si mesmo, inspirando-se no amor de Deus que suporta e ama para além do bem e do mal (Mt 5,45 e Lc 6,35). Acolher as sombras dos outros é para ele, manter os laços da fraternidade apesar do negativo. Não apenas suporta, mas ama e acolhe alegremente o negativo. Só deste modo o homem torna-se verdadeiramente livre, pois nada mais poderá ameaçá-lo (o testemunho de Freud).

São Boaventura afirmou que “Francisco parecia ter voltado ao primitivo estado de inocência original, nasceu em seu coração o paraíso terrestre”. Por esse modo-de-ser, franciscano, o homem pode viver e celebrar o mundo como um paraíso, quando ele mesmo se transfigurou e se reconciliou com todas as dimensões de sua história e de sua existência.