Por Frei Almir Guimarães
Neste tempo da Quaresma convém refletir sobre nossos limites e nossas fragilidades. Afinal de contas que sentido andamos dando aos sofrimentos que nos ocorrem?
Normal que nos sintamos preocupados, quase desesperados quando tomamos consciência de determinadas limitações que nos advêm. Pensamos numa enfermidade, no rompimento de um casamento, na morte de pessoas muito próximas. Tudo isso leva-nos a sentir quão grande é nossa fragilidade. Há pessoas que, nestas condições, sentem-se inúteis, tomadas de angústia sobretudo quando pensam no futuro, de modo muito especial os que são tomados por graves enfermidades. Em tais ocasiões discursos incitando-nos à resignação, à “aceitação da vontade de Deus” ou a respeito do valor redentor do sofrimento não nos atingem. Por vezes é preciso percorrer um caminho extenuante antes de vislumbrar qualquer sentido para os sofrimentos que chegam, alguns que permanecem para sempre.
O que dá sentido ao sofrimento não é o fato de sofrer, mas a dificuldade de continuar amando a partir de uma situação de sofrimento. O que dá sentido ao sofrimento, como aquilo que dá sentido à vida, é permanecer em relação com os outros, continuar tentando se interessar por eles evitando o fechamento do coração. Tocamos, nesse aspecto, o mistério de cada pessoa. Não existe receita mágica válida para todos.
Deus não se regozija com o sofrimento dos mortais. Podemos dizer que ele lhes dá alívio. Normalmente, ele o faz através das pessoas que cercam aquele que é presa de um sofrimento. Ele dá uma força para que sejamos capazes de esperar e dar um sentido ao que vivemos. Isso não acontece magicamente. Tudo vai depender das etapas da vida que atravessamos, de nossa patologia e do nosso caminhar espiritual. Necessário paciência e respeito na lenta elaboração de um sentido. As mais das vezes não encontramos as palavras mais adequadas para exprimir o que nos aflige e para consolar os que sofrem. Há medos difíceis de serem verbalizados. A experiência diz que muitas vezes nos encontramos sozinhos com nosso sofrimento, mesmo com o empenho generoso daqueles que nos cercam. Há momentos em que somos capazes de “suportar”, sem desesperar, nada mais: ou seja, conviver com o sofrimento. Em todo esse caminho descobrimos que existe em nós reservas de vitalidade, de vida que até então não havíamos suspeitado.
Há doentes que confessam que encontram sentido em seu sofrimento na medida em que os oferecem pelos outros. Contemplando Cristo na cruz, oferecem-se por eles para que possam ter vida. Fazem assim sem deixar de pedir o próprio restabelecimento. Como entender esta expressão: “Oferecer os próprios sofrimentos”? Muitas vezes, é bem verdade, nada se tem a oferecer senão a própria impotência, como Jó na Bíblia. Em outros momentos oferecer os sofrimentos poderá significar balbucios de confiança ou um frágil desejo de amar. Em todo caso nunca será questão de alcançar graça por meio de sofrimentos. A graça não se merece. Não se trata de resgate a pagar nem de sofrimento a ser buscado. Não é essa a oferenda que agrada ao Senhor.
Podemos começar tentando aceitar a situação que se passou a viver e evitar manifestações e sentimentos de revolta, deixando também sentimentos de culpabilidade. Não centrar tudo unicamente em nossa fragilidade, quando se é submergido pela dor. Não nos fecharmos em nós mesmos. Um passo adiante: um abertura de coração, muitas vezes tímida, poderá fazer com que abandonemos a obsessão pela cura a todo preço. Claro que tal vai depender do grau de sofrimento que se vive e da desumanização que se experimenta.
A saída do isolamento só é possível para um paciente na medida em que ele é auxiliado por pessoas que o visitam e conversam delicadamente com ele.
Há, é claro, a oração, o estar com Cristo, haurir do coração de Deus coragem e capacidade de amar. Pelo fato de Jesus nos ter salvo, não quer dizer que o fez pela quantidade de sofrimento. Semelhantemente os que sofrem de enfermidade aceitam de alguma forma serem vítimas em solidariedade com a humanidade pecadora e sofredora. No meio de dores e sofrimento nem sempre é fácil rezar.
Há pessoas que optam por um comportamento de intercessão inspirado nos comportamentos de Maria. Ela, exemplo para nós, esteve ao pé da cruz.
Alguém pode dizer: “Ofereço meu sofrimento pelo mundo”. Não se deve esquecer que é a qualidade de amor que torna nossa oferenda agradável a Deus e não o sofrimento em si mesmo. Podemos assim, com nosso consentimento, entrar no mistério da comunhão dos santos, quer dizer, esta solidariedade na luta contra o mal com as forças do amor, num mistério de transfiguração do mundo. Podemos descobrir, para surpresa nossa, que nossa maneira de viver pode ser fecunda para os outros na medida em que conservamos a fé, a abertura do coração e a acolhida do sofrimento dos outros. Poder continuar a comunicar e dar amor aos outros é a graça a ser suplicada. Tal dom redunda em graças para os outros. Pessoas sadias se solidarizam com doentes e vivem a dor do que sofre. Sabemos que não é fácil continuar interessando-se pelos outros quando nos sentimos fragilizados.
Nesse contexto cabe lembrar uma experiência feita por muitos. Encontramos pessoas que, pela qualidade de escuta, acolhimento e maneira de olhar, adivinhamos que tenham enfrentado sérios sofrimentos. Tais pessoas, passada a tormenta, não são mais capazes de julgar. Descobrem que sua real fecundidade não provém em primeiro lugar de suas competências, diplomas ou dons visíveis, mas às suas feridas, na medida em que elas foram aceitas e por vezes curadas. O sofrimento faz com que compreendam a sua vida e a dos outros. A qualidade de escuta, compaixão, ternura paciência que experimentam torna-se fonte de vida para os outros.
Amar até o ponto de “rasgar-se”, num rasgão que não é mais uma ferida purulenta. Assim, aos poucos podemos ir entrando numa transfiguração de amor, em renovação da aliança, que é muito mais do que um amor de contabilidade, “dou se deres”, rumo a um amor gratuito. Esse pode ser também caminho de renovação da aliança com o Bem Amado. Nesse momento, os valores mudança. Aquilo que, no passado, nos parecia tão valioso transforma-se em coisa efêmera.
Tudo que acaba de ser escrito não é evidente, nem previsível. Ninguém sabe como vai assumir a fragilidade e a diminuição de suas capacidades. Há muitos itinerários e experiências. Cada um deve percorrer seu caminho, como ele pode. Muitas pessoas não conseguem sucesso. Permanecem na revolta e no desespero. Precisam nesse momento de um respeitoso silêncio e de acolhimento e não de vãs palavras.
Esta reflexão inspirou-se fortemente em
Bernard Ugeux
Traverser nos fragilités
Les Éditions de l’Atelier
Paris 2006, p. 39-42
Nenhum comentário:
Postar um comentário