terça-feira, 15 de agosto de 2017
Especial Santa Clara de Assis - Seguimento de Cristo à maneira de Clara
1. Falar em Francisco e Clara é pensar em pessoas profundamente tocadas pela figura de Cristo pobre, crucificado, encarnação da bondade extrema de Deus. Falar em franciscanos e clarissas é referir-se a pessoas que foram se deixando formar, modelar e plasmar pela pobreza do Cristo. A melhor palavra não é formar, mas deixar-se seduzir por esta pobreza que tem um nome: Jesus Cristo. Estamos conscientes que a pobreza não significa apenas uma sobriedade nas vestes, na comida, no uso das coisas materiais. Tem ela a ver com desprendimento, despojamento, não posse. Não somente de bens materiais mais do velho homem que tenta sobreviver em nós. Não se trata apenas de um seguimento externo, mas de uma identificação de vida a vida entre o discípulo e o Cristo pobre. Na verdade, não podemos nos ater ao Cristo histórico, encerrado nas páginas dos evangelhos, mas a esse Ressuscitado que nos convida a entrar em comunhão nupcial com ele. Seguir Cristo à maneira de Clara será efetivamente estabelecer liames vitais e “virginais”, totais com esse Esposo que aparece no espelho. O incontido amor por Cristo faz com que Clara se torne sedenta de amor do Esposo feito pobreza.
2. Clara, como Francisco, começa e termina a Regra com uma declaração programática: “A forma e a vida da Ordem das Irmãs pobres, que o bem-aventurado Francisco instituiu, é esta: Observar o santo evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo” (Regra I,1). “Observemos para sempre a santa pobreza e humildade de Nosso Senhor Jesus Cristo e de sua Santíssima Mãe e o santo Evangelho que prometemos firmemente” ( Regra XII). Estas palavras abrem e fecham o texto da Forma de Vida escrita por Clara. Não constituem elas uma simples moldura, mas o fundamento que a tudo dá sustento.
3. “Por isso, de joelhos dobrados e prostrada, recomendo a todas as minhas irmãs atuais e futuras à Santa Igreja romana, ao Sumo Pontífice e principalmente ao senhor cardeal que for encarregado da Ordem dos Frades Menores e de nós, para que, por amor daquele Deus que pobre foi posto no presépio, viveu pobre no mundo e ficou nu no patíbulo faça com que sempre seu pequeno rebanho que o Senhor gerou em sua Igreja pela palavra e o exemplo de nosso bem-aventurado Pai São Francisco para seguir a pobreza e a humildade de seu Filho dileto e da Virgem, sua gloriosa Mãe, observe a santa pobreza que prometemos…” (Testamento 44ss). Clara quer levar suas irmãs ao essencial. Se o Filho de Deus escolheu o caminho da pobreza e do despojamento, então este é o caminho real que nos leva à Terra da Promissão.
4. Misturam-se nos escritos de Clara a imagem do Cristo rei (2CtIn) e a imagem do Cristo caminho. Clara emprega as duas imagens em suas cartas a Inês de Praga. Ela distingue os aspectos do mistério total de Cristo que habita na alma. A imagem do Cristo rei, reinando agora gloriosamente no céu, é a imagem do Esposo e objeto primário de seu desejo. Porém, a imagem do Cristo visto no contexto do mistério da Encarnação, o Cristo na sua humanidade, pobre e humilde, é o caminho para a desejada união. Os desponsórios místicos têm seu fundamento no aniquilamento amoroso do amado.
5. Com toda evidência, Clara exorta implicitamente a Inês a seguir aquilo que a literatura espiritual da Idade Média chama de caminho real. Para São Bernardo, a “via real” é aquela que se faz sem desvios, sem delongas desnecessárias. A pobreza é caminho real para a união esponsal porque elimina as causas de dissipação que nascem do apego aos bens terrenos. O caminho da pobreza, o caminho que o Senhor manifestou em sua humanidade: o caminho da pobreza e da humildade que levam à posse do Reino dos céus: “Ó bem-aventurada pobreza, que àqueles que a amam e abraçam concede as riquezas eternas! Ó santa pobreza, aos que a tem e desejam, Deus prometeu o reino dos céus e são concedidas sem dúvida alguma a glória eterna e vida feliz. Ó piedosa pobreza, que o Senhor Jesus Cristo se dignou abraçar acima de tudo, ele que regia e rege o céu e a terra, ele que disse e tudo foi feito (1CtIn 15-17). “O reino de Deus só é prometido e dado pelo Senhor aos pobres” (1CtIn 25). Este é o caminho duro e a porta estreita. Por meio de uma tal porta realiza-se a união mística com Cristo, o início do reino celeste já nesta terra. O caminho que Cristo nos mostra durante a sua vida terrena é o mesmo caminho que Francisco ensinou a Clara. Com sua palavra e seu exemplo, Clara orienta Inês e as Irmãs a percorrerem esta via regia. Durante toda a sua vida, Clara lutou para que ninguém a retirasse de tal caminho. No Testamento, ela escreve: “O Filho de Deus se fez para nós o caminho, que nosso bem-aventurado pai Francisco, que o amou e seguiu de verdade, nos mostrou e ensinou por palavra e pelo exemplo” (Test, 5).
6. Podemos dizer que Clara, na qualidade de guia espiritual, indicou e continua indicando para nós um só caminho que leva à união com Cristo, a via regia, o caminho percorrido primeiro por Cristo e Maria e depois por Francisco, seguimento do Cristo esposo, pobre e humilde. Nas palavras que ela empresta da Regra Bulada de São Francisco, Clara reforça que este é o caminho real: “Como peregrinas e forasteiras neste mundo… esta é a sublimidade da altíssima pobreza que vos fez, minhas caríssimas irmãs, herdeiras e rainhas do reino dos céus… Esta seja a vossa porção que nos leva à terra dos vivos” (RCl 8).
7. Clara interpreta o seguimento essencialmente em termos de amor sensível pela humanidade de Cristo – humanidade esta que é o caminho que nos leva ao Pai – e imitação das virtudes que o próprio Cristo viveu, principalmente a pobreza e a humildade. A prática destas virtudes místicas não se limita a uma imitação exterior de Cristo, mas um modo concreto de entregar-se totalmente a Cristo e abraçar misticamente sua humanidade e desta forma aprofundar a união esponsal com ele. Podemos avaliar a sensibilidade do amor de Clara para com Cristo no uso frequente de palavras que aludem ao seguimento em termos de abraço. Trata-se do abraço místico ou da união mística com a humanidade de Cristo mediante a prática das virtudes por ele santificadas:
“Ó bem-aventurada pobreza, que àqueles que a amam e abraçam concede as riquezas eternas!”(1CtIn 15). “Abrace o Cristo pobre como uma virgem pobre. Veja como por você ele se fez desprezível e siga-o sendo desprezível por ele nesse mundo” (2CtIn 18-19). “Vejo que são a humildade, a força da fé e os braços da pobreza que a levaram a abraçar o tesouro incomparável e escondido no campo do mundo e dos corações humanos, com o qual se compra aquele por quem tudo foi feito”(3CtIn 7).
8. O seguimento de Cristo para Clara comporta o abraço místico da humanidade de Cristo; em outras palavras, o caminho da imitação exterior da humanidade de Cristo e a conformidade (o entregar-se) interior da vontade à vontade de Deus levam ao amor puro, ao coração dos esponsais místicos entre a alma humana e o Verbo. “É essa a perfeição que vai uni-la ao próprio Rei no tálamo celeste, onde se assenta glorioso sobre um trono estrelado. Desprezando o fausto de um reino da terra, dando pouco valor à proposta de um casamento imperial, você se fez seguidora da santíssima pobreza em espírito de grande humildade e do mais ardente amor, juntando-se aos passos daquele com quem mereceu unir-se em matrimônio” (2CtIn 5-7).
9. Maria Victoria Triviño, clarissa espanhola, numa belíssima obra sobre os temas espirituais de Clara, conclui assim o capítulo a respeito da espiritualidade nupcial de Santa Clara, que outra coisa não é senão esse enamoramento da alma virginal pelo Esposo. Os temas do seguimento e da virgindade se entrelaçam: “Clara sente-se fortemente atraída – carisma de virgindade – e corre no encalço de Jesus Cristo empenhando todo o seu afeto, todos os sentidos e faculdades. Sua ascética consiste em “correr” impulsionada “pela violência do desejo”. Sua mística é o abraço esponsal. Sua bem-aventurança é a doçura escondida.
Não quer que seu pensamento se afaste da lembrança do Senhor, e o adivinha presente sob as mais diferentes aparências. Ama de todo o coração. Comove-se e chora quando fala da paixão (Proc XI,2), fica fora de si quando o contempla sozinha (ProcIII,25), treme quando recebe o Corpo do Senhor… Exulta ao escutar o Vidi aquam… Uma tal integração da afetividade faz dela uma mulher ardorosa e apaixonada.
Pode-se dizer que Clara nada fez sem entusiasmo. Basta recordar a fuga noturna, o desejo do martírio, o episódio dos sarracenos, o assédio de Vital de Anversa. No grande e no pequeno, no ordinário e no extraordinário sempre em tudo colocou um grande amor.
Mente, faculdades, coração, instinto… Tudo está polarizado num amor exclusivo. Assim todos os níveis do ser unificam no amor a Jesus Cristo. A vivência da maternidade espiritual faz com que ela se realize plenamente como mulher que se sente mãe, para Jesus Cristo e para com as irmãs.
Fruto desta unidade, em nível psicológico, é o equilíbrio, a harmonia. O que os autores modernos chamam de psicologia dinâmica. O divino se enraíza no psicológico. No plano espiritual, o fruto é um estado de bem-aventurança, a coroa da santidade: “.. estava sempre alegre no Senhor e jamais era vista perturbada, e sua vida era toda angélica” (Proc III,6).
O tema nupcial, tão explícito na primeira carta, foi avançando com o clamor de Raquel (“Lembre-se da sua decisão como um segunda Raquel; não perca de vista seu ponto de partida…” (2CtIn 11) e com a adesão à Mãe dulcíssima que a ama, acompanha e cuida, reaparece no começo do espelho. Contemplando os mistérios no espelho Clara se aprofunda no mistério do Amado. No final, a esposa repousa e descansa no beijo e no abraço da esposa do Cântico dos Cânticos (4CtIn 30-32).
Tudo o que disse Clara foi revestido de delicadeza e de beleza. Para viver o que foi dito necessário foi muita fortaleza. Estamos numa sociedade em que a virgindade é flor rara. Mal se fala dela. Muitos são os que acreditam que ela não pode ser guardada. Sempre houve quedas e abandonos que fizeram com que ela fosse menos digna de crédito. Quem não a acolheu não tem ouvidos para entendê-la, mesmo querendo discutir a seu respeito. A virgindade é um carisma que sempre ornou, orna e ornará a Igreja cristã.
É um carisma, um presente do Espírito do qual se deve dar testemunho diante do mundo que não tem dele alta cotação. A prudência humana não deve nos impedir de dar testemunho de sua beleza” (La vía de la beleza. Temas espirituales de Clara de Asís, BAC 46, Estudios y ensayos, p. 181-183).
10. Frei Herbert Schneider, OFM, refletindo sobre o tema Claire d’Assise, école de vie spirituelle, in Quaderni dell’Ufficio pro monialibus, n. 46, dicembre 2010, fala da espiritualidade como transformação: “Santa Clara exorta Santa Inês de Praga em sua segunda carta a realizar o tríplice passo da vida espiritual (2CtIn 20): olhar (intuere), considerar (considerare), contemplar (contemplare). É, por assim dizer, um tríplice passo do exterior para o interior para as profundezas lá onde ela se sente possuída pelo desejo amoroso (desiderare) de imitar (imitare). É o caminho da transformação em Cristo: trata-se de, pelo olhar, experimentar com ele o sofrimento, na consideração de morrer com ele e a partir desse momento acontece a transformação numa vida nova com Cristo. É a mudança em Cristo. Na espiritualidade da transformação/mudança, a forma de Cristo passa a manifestar-se no homem. O que é realidade no Cristo torna-se também pela transformação e a título de dom realidade no homem”.
11. Basta. O seguimento de Cristo na vida contemplativa significa transformar-se me Cristo. O amado de tanto se espelhar no Amante ganha seus traços e vive em comunhão com ele.
Frei Almir Ribeiro Guimarães
segunda-feira, 14 de agosto de 2017
Especial Santa Clara - Clara, a face feminina e carinhosa do carisma franciscano.
Por Vitório Mazzuco Fº
Santa Clara nasceu em Assis, no dia 16 de julho de 1193. Seu nome era Chiara di Messere Favarone, nome que evocava a força da família nobre. Nobre de nascença, nobre de costumes. Um pai, senhor feudal e cavaleiro. Família que tinha um palácio na cidade e um castelo no campo. Bela de rosto e rica de bolso. Uma mãe, Hortolana, mulher culta, sensível, líder e viajada. O pai morre cedo e a vida de Clara é conduzida por um tutor, seu tio Monaldo. Uma biografia simples com final previsto para o comum: arrumar um marido influente, rico e nobre para dar continuidade à estirpe dos Ofredducci Favarone.
Porém, aconteceu o oposto: a bela, e não despercebida Clara, é voltada para o espiritual, para a piedade, ama os pobres, é desapegada de sua herança, mistura-se com a vassalagem, acredita nos loucos sonhos de um jovem convertido que faz rumor em Assis, Francesco di Bernardone. Uma mulher prometida a cavaleiros, reis e príncipes, resolve prestar atenção num jovem deserdado pelo pai, que se desfaz do status de novo rico e resolve abraçar valores do Evangelho. Um mendigo penitente que vai criando um itinerário de vida. Mas não é o jovem que a atrai, mas sim o Evangelho percebido não como letra, mas como pessoa: Jesus, Francisco, leprosos, pequeninos, vermes do caminho e marginalizados. A Boa Nova não é só para monges, teólogos, clero, prelados e pregadores, a Boa Nova vale para todos os detalhes da bela Úmbria.
A menina Clara, com treze anos começa a perceber isto. O jovem Francisco, com 25 anos já está de carne e osso, hábito roto e calos nas mãos, olhos brilhando, e uma incontida alegria, totalmente envolvido no projeto de fazer o Amor ser amado. Clara tinha um primo, Rufino, que fez estrada com Francisco. Quando completou 18 anos, ajudada por uma governanta, fugiu de casa para ser livre na escolha. Se casar com um da mesma classe social era sonho da sua família; amar todas as classes sociais, incondicionalmente, era um sonho seu, atrelado a um acolhimento divino. Foi juntar-se com Francisco e seus companheiros em Santa Maria dos Anjos. Antes mandou apoio, ajuda e boas energias para o grupo que já estava lá. Quando se juntou à Fraternidade primitiva, cortou os cabelos e os cordões umbilicais do seu brilhante passado de moça rica.
Havia no ar a psicose da heresia que não a permitiu ser mulher entre homens penitentes. Foi viver um tempo num mosteiro de Beneditinas e depois, junto ao altar, presépio, cruz e eucaristia, ao Espírito Comum e Francisco, ao discernimento na prece, encontrou o seu lugar definitivo: cuidar da inspiração junto à Cruz de São Damião. Seu tio, cavaleiros a serviço da família procuraram, usando a força, levá-la de volta para a casa. Mulher que ama não conhece caminho de volta. Não tem retorno. Olha para a frente e abraça a vida de oração, silêncio, contemplação, ação, elementos de uma vocação que não diminuiu sua beleza e força de atração. Duas irmãs de sangue e sua mãe foram morar com ela no novo mosteiro. Nascia uma nova Ordem, as Damas Pobres, as Clarissas. Assim nasceu Clara de Assis, uma raiz forte da frondosa árvore que começou a ser semeada por Francisco de Assis.
Clara foi mais irmã que abadessa; encarnou humildade e sobriedade, paciência e serviço, cuidou com bênção e carinho das irmãs enfermas e fracas. Fez penitência sorrindo e caridade abrindo o mosteiro para os arredores. Assis e o mundo olhavam estarrecidos aquela jovem decidida que abriu mão de riqueza, de baú de jóias e vestes, valores do mundo, para seguir apaixonadamente Jesus. Transformou a sua condição social em força espiritual: ser cristã é casar com o Deus humilde, pobre, crucificado. Mostrou que beleza é Espelho do Sagrado. Que clausura não é fechamento, mas abertura para a escolha mais livre de Amor.
Clara de Assis é uma heroína do desapego. Escondeu-se para deixar transparecer uma Verdade Maior. Hoje é para nós uma luz de personalidade forte, atitudes generosas, sensibilidade, este modo histórico de como o sagrado feminino se revela. Não renunciou o Amor, apenas purificou a escolha: tornou-se vassala do Grande Rei.
Muitos pensaram que era uma mulher frágil e manipulável por bulas, decretos, regras, protecionismo e propriedade curial. Ela mesma pediu um privilégio, garantido em 1228, de colocar tudo em comum sem acumular nada. Aprendeu com Francisco que ser pobre é pra valer: não ter nada mesmo para possuir a Única Riqueza que preenche o coração: Deus e a Fraternidade. Os dois foram os últimos da história a conseguir viver isto de um modo absoluto. Clara não ficou para a história como uma ex-rica. Permanece como uma mulher santa, irmã, esposa e mãe que guia vidas.
Hoje tem mais de 21 mil seguidoras no mundo. O seu pobre mosteiro continua sendo uma mina de pedras preciosas lapidadas pelo Altíssimo. Nos últimos dias de sua vida escreveu uma Regra que muitos acham que é igualzinha a de Francisco; mas examinando bem é apenas um jeito de ser clara, de ser filha, de ser esposa, de ser irmã, de ser espelho do Evangelho. Não é apenas uma Regra de Vida Monástica, é um modo terno, forte e leal de organizar a vida seguindo o destino do Amado.
sexta-feira, 11 de agosto de 2017
Especial Santa Clara De Assis - Clara hoje: Uma voz que não se cala
Frei Almir Guimarães
Preste atenção no princípio do espelho: a pobreza daquele que, envolto em panos foi posto no presépio! Admirável humildade, estupenda pobreza! O Rei dos anjos repousa numa manjedoura. No meio do espelho considere a humildade, ou pelo menos a bem-aventurada pobreza, as fadigas sem conta e as penas que suportou pela redenção do gênero humano. E, no fim desse mesmo espelho, contemple a caridade inefável com que quis padecer no lenho da cruz e nela morrer a morte mais vergonhosa (4ª. Carta a Inês de Praga).
Cada geração é salva pelo santo que a contradiz (Chesterton).
Dou graças ao Senhor por todas as vezes que, exatamente junto a um mosteiro, desde frade jovem pude fazer a experiência de “cura” recolocando em ordem harmoniosa os valores evangélicos de minha vocação e missão, graças à ajuda das irmãs clarissas. Muitas vezes pedi hospitalidade em seus mosteiros para dar novo tom espiritual à minha vida. Obrigado a todas vós, irmãs clarissas, por esta função “terapêutica” tão importante para a caminhada vocacional de uma pessoa consagrada (Fr. Giacomo Bini, OFM, Ex- Ministro Geral).


















Concluindo
A. Clara viveu a aventura de Deus. Entregou-se nas mãos do Senhor. Saiu de casa sem o mapa do caminho. Entregou-se sem reservas à maneira de Abraão. Ele quer que hoje questionemos o “nosso ponto” de partida, a vivência de nossa vocação que haverá de fazer numa entrega irrestrita ao Senhor dentro das condições de seculares que são os terceiros franciscanos e de religiosos que são os frades. Por sua vida, Clara grita esse testemunho. Não somos donos de nós. Que o Senhor possa fazer uma obra de arte em cada um de nós! As coisas não estão acabadas.
B. Os franciscanos, sejam eles quais forem, são pessoas despojadas, sem trunfos, sem exigências, sem reivindicações na linha do poder, do prestígio, do ter. Clara e as irmãs de São Damião viviam em total simplicidade e modéstia, viviam de esmolas e, nos começos, as pessoas não eram generosas nas esmolas. Casa modesta, cama modesta, comida modesta, muitas vezes vida de penúria. Clara ensina os franciscanos da Ordem 1ª a levar a sério o compromisso de pobreza evangélica. Sugere que as Fraternidades Seculares sejam constituídas de pessoas simples, sem pose, sem pompas. Gente que não dá importância às aparências, aos aplausos e todo tipo de superioridade, gente com um estilo de vida pobre. Muitas irmãs clarissas, em nossos dias, vivem realmente a pobreza e espelham a alegria de terem pouca bagagem na caminhada da vida.
C. Ser franciscano é ser cultivador da fraternidade. Desafio constante. Nunca matamos completamente o Caim que existe em nós. Vemos Clara cuidando das irmãs, cobrindo-as no tempo do inverno, acolhendo com carinho as que saíam para esmolar, sendo mãe e irmã. Tudo se passa no exíguo espaço dos lugares de São Damião. O nome verdadeiro das clarissas é o de irmãs pobres. O exemplo de Clara e as observações de sua Regra pedem que nos interessemos mais uns pelos outros, que preparemos cuidadosamente nossos encontros fraternos. Os franciscanos seculares, no momento atual, estão empenhados e rever a qualidade de sua vida fraterna e, de modo particular, a maneira como realizam os encontros fraternos. Clara grita que precisamos viver o bem-querer concreto.
D. A grande atividade de Clara e de suas irmãs era a da oração: ofício, missa, longas horas de meditação, contemplação da Paixão de Jesus e do Crucifixo bizantino. Clara, como Francisco, pede que as irmãs, no meio de seus trabalhos, não venham a perder o espírito da santa oração. As cartas dirigidas a Inês de Praga nos falam de uma oração de união. Os franciscanos, tanto os seculares quanto os da Ordem 1ª, gostam de passar um tempo junto ao mosteiro das clarissas. Clara está gritando que toda esse nossa correria, esses discursos e essa nossa fala pouco adiantam. Sentimos que precisamos rever a qualidade de nossa oração. Não é possível viver sem saudades do Senhor. Precisa haver lugar em nossas agendas a tentativa, nem sempre fácil, de buscar o Esposo que não quer partes de nós mas a inteireza de nosso ser.
E. Os Mosteiros de clarissas serão cada vez mais próximos das pessoas, sem que percam o essencial o carisma. Suas liturgias serão eloquentes. Momentos de oração e tarde de retiro podem ser feitos em nossos Mosteiros. Franciscano seculares poderiam melhor haurir as riquezas desses Mosteiros.
F. De toda nossa reflexão ficou claro que os franciscanos e as clarissas precisarão descobrir caminhos novos a serem trilhados. Não cansamos de repetir que se torna urgente uma fidelidade criativa. Renovar ou morrer.
G. “Hoje somos vítimas de tensões, do estresse e da depressão que ameaçam nossa ‘saúde’ espiritual. Talvez uma das tarefas de Santa Clara poderia ser a de ajudar-nos a reencontrar a harmonia dos valores franciscano-clarianos, a gratuidade e a beleza de nossa vida, sem pretensões de eficiência. É fácil sermos instrumentalizados pelas necessidades imediatas e perdermos a visão de conjunto, a capacidade de discernir aquilo que é urgente, daquilo que é necessário; preocupamo-nos com muitos projetos que programamos ou que nos são propostos pelo mundo consumista em que vivemos e corremos o risco de esquecer o compromisso primário de ser “projeto de Deus”. Creio que seja urgente, hoje, renovar e continuar a colaboração entre Clara e Francisco para evitar toda forma de “insânia”, de “esquizofrenia” que destrói a própria vida consagrada” (Frei Giacomo Bini, OFM).
Clara não reivindicou para ela e suas irmãs o direito de pregar ou ensinar, mas desejava ardentemente continuar vivendo em simbiose com os irmãos menores e recusava a ideia de ver a sua comunidade transformar-se em um mosteiro de virgens reclusas e dotadas de rendas; se parece não ter tido dificuldade em aceitar a estabilidade e a clausura, à semelhança das reclusas, que, aos mesmo tempo que se dedicavam à contemplação, guardavam contato como mundo que as rodeava, Clara sempre recusou ceder no capítulo da pobreza, porque o fato de viver numa precariedade permanente constituía o ponto sobre o qual a sua fundação podia, diferenciando-se do monarquismo beneditino clássico, permanecer fiel ao Espírito do Poverello e, através dele, com as aspirações evangélicas que haviam animado os movimentos leigos do século XI e começos do século XIII.
André Vauchez
Santa Clara y los movimientos
religiosos femininos de su tiempo
Selleciones de Franciscanismo, 1977, vol 26, p. 452
Fonte : http://www.franciscanos.org.br
Santa franciscana do dia - 11/08 - Santa Clara de Assis
Virgem, fundadora da Segunda Ordem (1194-1253). Foi canonizada por Alexandre IV no dia 15 de agosto de 1265.
Palavras do Papa Emérito Bento XVI
Uma das santas mais amadas é, sem dúvida, Santa Clara de Assis, que viveu no século XIII, contemporânea de São Francisco. Seu testemunho mostra-nos o quanto a Igreja deve a mulheres corajosas e ricas na fé como ela, capazes de dar um impulso decisivo para a renovação da Igreja.
Quem foi então Clara de Assis? Para responder a esta pergunta, temos fontes seguras, não apenas as antigas biografias, como a de Tomás de Celano, mas também os autos do processo de canonização promovido Papa já pouco depois da morte de Clara e que contêm o testemunho dos que viveram ao seu lado por muito tempo.
Nascida em 1193, Clara pertencia a uma família aristocrática e rica. Renunciou à nobreza e à riqueza para viver pobre e humilde, adotando a forma de vida que Francisco de Assis propunha. Apesar de seus pais planejarem um casamento com algum personagem de relevo, Clara, aos 18 anos, com um gesto audaz, inspirado pelo profundo desejo de seguir a Cristo e pela admiração por Francisco, deixou a casa paterna e, em companhia de uma amiga sua, Bona di Guelfuccio, uniu-se secretamente aos frades menores junto da pequena igreja da Porciúncula.
Era a tarde de Domingo de Ramos de 1211. Na comoção geral, realizou-se um gesto altamente simbólico: enquanto seus companheiros tinham nas mãos tochas acesas, Francisco cortou-lhe os cabelos e Clara vestiu o hábito penitencial. A partir daquele momento, tornava-se virgem esposa de Cristo, humilde e pobre, e a Ele totalmente se consagrava. Como Clara e suas companheiras, inumeráveis mulheres no curso da história ficaram fascinadas pelo amor de Cristo que, na beleza de sua Divina Pessoa, preencheu seus corações. E a Igreja toda, através da mística vocação nupcial das virgens consagradas, demonstra aquilo que será para sempre: a Esposa bela e pura de Cristo.
Em uma das quatro cartas que Clara enviou a Santa Inês de Praga, filha do rei da Bohemia, que queria seguir seus passos, ela fala de Cristo, seu amado esposo, com expressões nupciais, que podem surpreender, mas que comovem: “Amando-o, és casta, tocando-o, serás mais pura, deixando-se possuir por ele, és virgem. Seu poder é mais forte, sua generosidade, mais elevada, seu aspecto, mais belo, o amor mais suave e toda graça. Agora tu estás acolhida em seu abraço, que ornou teu peito com pedras preciosas… e te coroou com uma coroa de ouro gravada com o selo da santidade” (Lettera prima: FF, 2862).
Sobretudo no início de sua experiência religiosa, Clara teve em Francisco de Assis não só um mestre a quem seguir os ensinamentos, mas também um amigo fraterno. A amizade entre estes dois santos constitui um aspecto muito belo e importante. Efetivamente, quando duas almas puras e inflamadas do mesmo amor por Deus se encontram, há na amizade recíproca um forte estímulo para percorrer o caminho da perfeição. A amizade é um dos sentimentos humanos mais nobres e elevados que a Graça divina purifica e transfigura.
Como São Francisco e Santa Clara, outros santos vivenciaram uma profunda amizade no caminho para a perfeição cristã, como São Francisco de Sales e Santa Giovanna de Chantal. O próprio São Francisco de Sales escreve: “é belo poder amar na terra como se ama no céu, e aprender a amar-nos neste mundo como faremos eternamente no outro. Não falo aqui de simples amor de caridade, porque este devemos tê-lo todos os homens; falo do amor espiritual, no âmbito do qual, duas, três, quatro ou mais pessoas compartilham devoção, afeto espiritual e tornam-se realmente um só espírito” (Introduzione alla vita devota III, 19).
Após ter transcorrido um período de alguns meses em outras comunidades monásticas, resistindo às pressões de seus familiares que no início não aprovavam sua escolha, Clara se estabeleceu com suas primeiras companheiras na igreja de São Damião, onde os frades menores tinham preparado um pequeno convento para elas.
Nesse mosteiro, viveu durante mais de quarenta anos, até sua morte, ocorrida em 1253. Chegou-nos uma descrição de primeira mão de como estas mulheres viviam naqueles anos, nos inícios do movimento franciscano. Trata-se do informe cheio de admiração de um bispo flamengo em visita à Itália, Santiago de Vitry, que afirma ter encontrado um grande número de homens e mulheres, de toda classe social, que, “deixando tudo por Cristo, escapavam ao mundo. Chamavam-se frades menores e irmãs menores e são tidos em grande consideração pelo senhor Papa e pelos cardeais… As mulheres… moram juntas em diferentes abrigos não distantes das cidades. Não recebem nada; vivem do trabalho de suas mãos. E lhes dói e preocupa profundamente que sejam honradas mais do que gostariam, por clérigos e leigos” (Carta de outubro de 1216: FF, 2205.2207).
Santiago de Vitry tinha captado com perspicácia um traço característico da espiritualidade franciscana, a que Clara foi muito sensível: a radicalidade da pobreza associada à confiança total na Providência divina. Por este motivo, ela atuou com grande determinação, obtendo do Papa Gregório IX ou, provavelmente, já do Papa Inocêncio III, o chamado Privilegium Paupertatis (cfr FF, 3279). Em base a este, Clara e suas companheiras de São Damião não podiam possuir nenhuma propriedade material. Tratava-se de uma exceção verdadeiramente extraordinária em relação ao direito canônico vigente, e as autoridades eclesiásticas daquele tempo o concederam apreciando os frutos de santidade evangélica que reconheciam na forma de viver de Clara e de suas irmãs.
Isso demonstra também que nos séculos medievais, o papel das mulheres não era secundário, mas considerável. A propósito disso, é oportuno recordar que Clara foi a primeira mulher da história da Igreja que compôs uma Regra escrita, submetida à aprovação do Papa, para que o carisma de Francisco de Assis se conservasse em todas as comunidades femininas que iam se estabelecendo em grande número já em seus tempos, e que desejavam se inspirar no exemplo de Francisco e Clara.
No convento de São Damião, Clara praticou de modo heróico as virtudes que deveriam distinguir cada cristão: a humildade, o espírito de piedade e de penitência, a caridade. Ainda sendo a superiora, ela queria servir em primeira pessoa as irmãs enfermas, submetendo-se também a tarefas muito humildes: a caridade, de fato, supera toda resistência e quem ama realiza todo sacrifício com alegria. Sua fé na presença real da Eucaristia era tão grande que em duas ocasiões se comprovou um fato prodigioso. Só com a ostensão do Santíssimo Sacramento, afastou os soldados mercenários sarracenos, que estavam a ponto de agredir o convento de São Damião e de devastar a cidade de Assis.
Também esse episódio, como outros milagres, dos quais se conservava memorial, levaram o Papa Alexandre IV a canonizá-la só dois anos depois de sua morte, em 1255, traçando um elogio a ela na Bula de canonização, onde lemos: “Quão vívida é a força desta luz e quão forte é a claridade desta fonte luminosa. Na verdade, esta luz estava fechada no esconderijo da vida de clausura, e fora irradiava esplendores luminosos; recolhia-se em um pequeno monastério, e fora se expandia por todo vasto mundo. Guardava-se dentro e se difundia fora. Clara, de fato, se escondia; mas sua vida se revelava a todos. Clara calava, mas sua fama gritava” (FF, 3284). E é precisamente assim, queridos amigos: são os santos que mudam o mundo para melhor, transformam-no de forma duradoura, injetando-lhe as energias que só o amor inspirado pelo Evangelho pode suscitar. Os santos são os grandes benfeitores da humanidade!
A espiritualidade de Santa Clara, a síntese de sua proposta de santidade está recolhida na quarta carta a Santa Inês de Praga. Santa Clara utiliza uma imagem muito difundida na Idade Média, de ascendências patrísticas, o espelho. E convida sua amiga de Praga a se olhar no espelho da perfeição de toda virtude, que é o próprio Senhor. Escreve: “feliz certamente aquela a quem se lhe concede gozar desta sagrada união, para aderir com o profundo do coração [a Cristo], àquele cuja beleza admiram incessantemente todas as beatas multidões dos céus, cujo afeto apaixona, cuja contemplação restaura, cuja benignidade sacia, cuja suavidade preenche, cuja recordação resplandece suavemente, a cujo perfume os mortos voltarão à vida e cuja visão gloriosa fará bem-aventurados todos os cidadãos da Jerusalém celeste. E dado que ele é esplendor da glória, candura da luz eterna e espelho sem mancha, olhe cada dia para este espelho, ó rainha esposa de Jesus Cristo, e perscruta nele continuamente teu rosto, para que possas te adornar assim toda por dentro e por fora… neste espelho resplandecem a bem-aventurada pobreza, a santa humildade e a inefável caridade” (Quarta carta: FF, 2901-2903).
Agradecidos a Deus que nos dá os santos, que falam ao nosso coração e nos oferecem um exemplo de vida cristã a imitar, gostaria de concluir com as mesmas palavras de benção que Santa Clara compôs para suas irmãs e que ainda hoje as Clarissas, que desempenham um precioso papel na Igreja com sua oração e com sua obra, custodiam com grande devoção. São expressões das que surge toda a ternura de sua maternidade espiritual: “Bendigo-vos em minha vida e depois de minha morte, como posso e mais de quanto posso, com todas as bênçãos com as que o Pai de misericóridas abençoa e abençoará no céu e na terra seus filhos e filhas, e com as quais um pai e uma mãe espiritual abençoa e abençoará seus filhos e filhas espirituais. Amém” (FF, 2856).
Papa Bento XVI
quinta-feira, 10 de agosto de 2017
Especial Santa Clara de Assis - A Consagração.
Clara chegou à Porciúncula. Francisco a acolheu e lhe deu as boas-vindas. Comovida, ela entrou na igreja, ajoelhou-se diante do altar e, por alguns instantes, deteve-se em oração. Depois, levantou-se com decisão; tirou o calçado, despiu-se do vestido de brocado e o trocou por uma túnica grosseira, retirou seu rico cinto e o substituiu por uma corda áspera.
Em seguida, ajoelhou-se ainda; soltou de uma vez os cabelos que deslizaram sobre os ombros; depois, permaneceu com a cabeça inclinada, à espera do último sacrifício.
Francisco recolheu com delicadeza a loura cabeleira e, bem devagarzinho, a cortou. A cerimônia estava acabada.
A reação dos parentes
Como era de se prever, a reação dos parentes de Clara não se fez esperar. Pela manhã, apenas descobriram sua fuga, puseram-se em pé de guerra e rapidamente chegaram ao mosteiro de São Paulo para reconduzi-la à casa. Ameaçaram arrombar a porta. Querem Clara, viva ou morta. Com o aparato exterior e as ameaças, esperam assustá-la, mas iludem-se! Clara é irremovível. Visto que era vã toda a ameaça, recorrem às boas maneiras, às lisonjas e às promessas; fazem apelo aos sentimentos, à dor da mãe, das irmãs, de toda a família, mas Clara é inflexível; sabe que está mais em segurança entre aquelas paredes do que se estivesse num castelo.
Agarra-se ao altar – Quando se dá conta de que estão a ponto de perder o controle e recorrer à violência, Clara, com um gesto, fez desmoronar todas as ilusões deles: foge para a igreja e corre para junto ao altar; com uma das mãos segura a toalha e com a outra retira o véu da cabeça, fazendo-a aparecer sem os cabelos que haviam sido cortados.
Demonstrava, assim, ser agora consagrada a Deus e que ninguém podia tocá-la. Diante de tanta firmeza, aos familiares outra coisa não restou senão abandonarem a igreja e o mosteiro e partirem confusos.
Transferida para o mosteiro de Santo Ângelo – Em São Paulo, Clara pôde permanecer só poucos dias. Foram talvez as próprias monjas a solicitar o afastamento dela depois da confusão provocada por sua presença.
Francisco interessou-se pela transferência dela. Mais uma vez, dirigiu-se aos Padres Beneditinos e obteve a transferência de Clara para o mosteiro de Santo Ângelo de Panzo.
Finalmente um pouco de paz! – Na quietude e no silencio do mosteiro de Santo Ângelo, Clara pôde revigorar o seu ideal de vida.
Apegava-se cuidadosamente às prescrições da Regra de São Bento, que possui como fundamento: “Ora et Labora”! Com isso, Clara não pretendia, certamente, abraçar a Regra de São Be nto. Não teria tido sentido sua fuga para a Porciúncula, durante a noite, seu total abandono a Deus para além de qualquer estrutura, a exemplo de Francisco.
No mosteiro de Santo Ângelo, Clara viveu por algumas semanas. Foram para ela dias de serenidade e de alegria indescritíveis.
A alegria de Clara estava toda no sentir-se amada e protegida pelo Senhor, como mesmo amor com que uma mãe protege sua filhinha.
A fuga de casa lhe havia fechado o mundo às costas para abrir-lhe um umbral do mistério de Deus. Sua vida, agora, havia se transformado em um arco-íris de oração e contemplação: em um agradecimento alegre e infantil.
Fugira de casa em uma noite de primavera, para abraçar o ideal de total pobreza, e encontrara a verdadeira liberdade, a perfeita alegria. Havia atingido o seu sonho.
Encontra-se com sua irmã Inês
Clara sentia a necessidade de externar sua ardente experiência mística. Quase todos os dias, sua irmã Inês ia visitá-la: era uma jovem belíssima, de somente quinze anos, de grande sensibilidade para com o sobrenatural. Depois da fuga de Clara, os familiares haviam depositado nela sua esperança.
“Cara Inês — confiava-lhe a irmã — lembra-te: é preferível viver um só dia na casa do Senhor, que mil dias fora dela. A juventude é vento que passa. A beleza se desvanece como a fumaça. A vida termina e aqui não fica nada.
“Oh! minha irmã, se tu pudesses provar a doçura do amor do Senhor! E um amor sempre jovem, que ninguém nos pode arrebatar!”
quarta-feira, 9 de agosto de 2017
Especial Santa Clara de Assis - Lampejos da forma de vida de Santa Clara de Assis.
Frei João Mannes, OFM
Na história cristã, Clara é, certamente, a mulher que mais fielmente se conformou ao Filho de Deus encarnado. Por isso, no presente artigo tem-se por objetivo chamar a atenção para alguns aspectos essenciais de sua Forma de Vida, inspirada pelo Senhor e Servo Jesus Cristo através do exemplo e da doutrina de São Francisco. Dar-se-á especial ênfase ao “privilégio da pobreza”, pois, outrora como agora, onde falta amor à pobreza não há autêntica experiência religiosa.
1 – A Forma de Vida começa “em nome do Senhor”
A primeira e originária Forma de Vida professada por Clara e suas Irmãs foi escrita por Francisco de Assis, e devia ser muito semelhante à primeira Regra (Proto-Regra) que ele escreveu para si e para os Frades (cf. RB 1,1; RSC 1,3). Pois, o mistério que dá origem à decisão de Francisco de seguir Jesus Cristo pobre e crucificado e viver aquela maneira ordenada por Cristo no Evangelho do Envio dos Apóstolos é o mesmo que encanta, fascina e converte Clara de Assis ao Evangelho de Jesus Cristo. Mais que em Francisco, Clara tem no mistério da expropriação divina o coração de toda a sua existência religiosa.
No entanto, é importante ter presente a luta intrépida de Clara, até sua morte, para obter a aprovação oficial da Igreja para a Regra que ela mesma escrevera. Essa Regra ou Forma de Vida genuinamente clariana só foi aprovada pelo Papa Inocêncio IV aos 09 de agosto de 1253 e recebida com a Bula papal por Clara no dia 10, portanto, um dia antes de sua morte, 11 de agosto.
Ao abrir a Regra de Santa Clara nos deparamos primeiramente com a Bula do papa Inocêncio IV que confirmou e assegurou a eclesialidade e perpetuidade da Forma de Vida da Ordem das Irmãs pobres. É na e através da Ordem das Irmãs Pobres, canonicamente aprovada pela Igreja, que flui até nós, para nós e para o mundo o espírito originário da Forma de Vida clariana. Sem a Ordem, certamente, não teríamos essa preciosa espiritualidade evangélica que, no decorrer dos séculos, vem encantando tantos homens e mulheres desejosos de seguir Jesus Cristo na vivência radical do Evangelho (cf. DORVALINO, 2009, p. 48-55). Na saudação inicial à senhora Clara, bem como às outras Irmãs, tanto presentes como futuras, o Papa deseja “saúde e bênção apostólica”.
Ao desejar a bênção apostólica às Irmãs, certamente o Papa expressou o seu ardente desejo de que elas fossem sempre imbuídas da força, do vigor e do ânimo que transformou aqueles homens, simples e rudes pescadores, em dedicados apóstolos e exemplares testemunhas de Jesus Cristo e de seu Evangelho. E é bem provável que ao desejar-lhes saúde, a autoridade apostólica expressou o desejo de que as Irmãs fossem sempre de alma pura, salva, livre, desprendida e desapegada de tudo o que pudesse ser impedimento à união total com o Amado Jesus Cristo. Assim, despojada de tudo, a Forma de Vida clariana seria sustentada unicamente pela força, pelo Espírito que nutriu e ratificou a vida dos apóstolos (cf. DORVALINO, 2009, p. 40-41).
Clara de Assis, em seu Testamento, destaca que foi o altíssimo Pai celeste que iluminou o seu coração para fazer penitência:
Depois que o altíssimo Pai celestial, por sua misericórdia e graça, se dignou iluminar o meu coração para fazer penitência, segundo o exemplo e doutrina de nosso bem-aventurado pai Francisco, pouco depois de sua conversão, com algumas irmãs que Deus me dera logo após a minha conversão, eu lhe prometi obediência voluntariamente (TestC 24s; cf. RSC 6,1).
Sem dúvida, o exemplo e doutrina de Francisco teve grande influência na decisão vocacional de Clara. No entanto, ela mesma assegura que o processo de sua conversão teve início porque Deus, o Pai de misericórdia, se dignou iluminar o seu coração, e a elegeu para ser a discípula e esposa amada do seu Filho Jesus. Ademais, assegura a serva de Cristo, que a vida de penitência empreendida por ela é uma voluntária resposta à convocação divina de conformar-se a Jesus Cristo (cf. RSC 6,1). Enfim, a existência religiosa de Clara teve início em Deus, conforme também atesta o título do primeiro capítulo da Forma de Vida da Ordem das Irmãs Pobres: “Em nome do Senhor começa a forma de vida das Irmãs Pobres”.
A expressão “nome” (em nome do Senhor) indica aquilo que o Senhor é essencialmente, isto é, o seu modo de ser de servo. Paradoxalmente o Senhor é aquele que mais serve; o Senhor é aquele que se humilha até o extremo. De modo que, ao iniciar a sua Forma de Vida invocando o nome do Senhor, Clara dispõe-se a viver no vigor, na energia, na disposição do Senhor-servo. A Forma de Vida clariana nasce, cresce, amadurece e se consuma no espírito do Senhor e Servo Jesus Cristo. Portanto, na expressão “em nome do Senhor”, anuncia-se que o sentido fundamental da vida de Clara consiste em deixar-se impregnar e conduzir pelo “espírito do Senhor e seu santo modo de operar” (RB 10,9).
Por fim vale ressaltar que Clara estava convicta de que a sua Forma de Vida estava sendo gerada pelo Senhor no seio da Igreja (cf. TestC 46). Tinha a consciência de que não estava nesta Vida por iniciativa particular, sua, mas porque Deus a havia escolhido por sua pura benevolência e infinita misericórdia.
2 – Relacionamento esponsal com Jesus Cristo
A Dama Pobre de Assis, por inspiração divina, encontrou o sentido fundamental de sua existência na pessoa de Jesus Cristo, o Filho de Deus que incondicionalmente assumiu a condição humana na forma de Servo, até a morte de Cruz. O mistério da encarnação (kénosis) do Filho de Deus, tal qual aconteceu, em pobreza e humildade, está na raiz da espiritualidade de Santa Clara.
A opção fundamental de vida de Santa Clara é pelo seguimento de Jesus Cristo pobre. Ela “já não queria mais nada a não ser Cristo” (2LV 12). E ao colocar-se diante de Jesus não tinha diante dos olhos um programa de virtudes a serem praticadas, mas estava diante de uma pessoa, que trazia uma proposta capaz de apaixonar e atrair discípulos e discípulas para a grande aventura de viver o Evangelho. O discípulo/a é amante de Alguém que atrai e fascina, porque encarna e concretiza os anseios humanos mais profundos (cf. 2LV 7).
Por conseguinte, a essência da vida de Clara e de suas Irmãs é, antes de qualquer outra coisa, amar uma pessoa, Jesus Cristo, como resposta ao seu amor. “Ame com todo coração a Deus (cf. Dt 111; Lc 10,27) e a seu Filho Jesus, crucificado por nós pecadores, sem permitir que ele saia de sua recordação” (Er 11). Entretanto, nós, raramente, nos damos conta de que não somos nós que amamos, quando amamos. É o amor que nos ama, nos leva e nos faz amar o que amamos. Esta é a mística de Santa Clara que, no íntimo do seu coração, deixa-se simplesmente enlevar pelo amor do Amado, e, por isso, todo o seu afeto, amor e caridade para com as Irmãs (cf. LSC 38), aos pobres e doentes são manifestações concretas de sua relação amorosa com Jesus Cristo. É vivendo no amor a Jesus Cristo que se chega a ser morada de Deus (cf. Jo 14,23) e se adquire aquele olhar de fé que, graças a Ele, nos permite contemplar o rosto do Amado no rosto dos irmãos e irmãs.
À medida que Clara, “serva indigna de Cristo e plantinha (em latim plantula = rebento, broto) do bem-aventurado pai Francisco” (RSC 1,3) mergulha na mais íntima solidão de sua alma, reencontra-se a si mesma e a todas as criaturas, que antes abandonara por amor a Deus. Sair de si, desprender-se do eu é achegar-se ao portal da origem de todos os seres. Nesse total desprendimento de si a alma humana entrevê o aceno do Divino que se revela e se esconde no interior de cada criatura. De modo que a clausura material de Clara e de suas Irmãs (cf. RSC 11) não é fuga nem rejeição do mundo, mas é, antes, expressão de um silêncio e recolhimento interior (cf. LSC 36), que possibilita a contemplação de si mesma e de todos os seres do universo, à luz da Palavra criadora que jorra do silêncio eterno de Deus. Na vigência do radical desprendimento e da total disponibilidade revela-se toda a profundidade ontológica das criaturas. Somente Deus é ser, toda a criatura é um sendo que tem de receber o ser de Deus.
Portanto, Clara, com todas as fibras do coração, procurou evitar que “toda soberba, vanglória, inveja, avareza, cuidado e solicitude deste mundo” (RSC 10,6) desviassem o seu coração do único necessário, Jesus Cristo. Ser puro, casto e virginal é ser livre dos apegos que traduzem os falsos absolutos da vida: a autopromoção, o acúmulo de honra, fama, riqueza e poder. Ter o coração puro significa não se deixar sufocar pelos cuidados e solicitudes deste mundo, mas voltar-se totalmente para Deus, de tal maneira que Ele possa habitar no coração de forma permanente (cf. 2LV 29). Foi assim, conservando o seu corpo casto e virginal, que Clara reviveu espiritualmente o mistério da mãe do Senhor, que humildemente dispôs-se à ação transformadora do Espírito Santo e tornou-se efetivamente a mãe do Filho do altíssimo Pai (cf. 3In 24-25).
Entretanto, ser mãe do Filho de Deus e tê-lo como único esposo não é um privilégio exclusivo das Damas pobres. Conforme atesta Francisco na Carta aos Fiéis, todos aqueles e aquelas que realizam as obras do Pai celestial “são esposos, irmãos e mães (cf. Mt 12,50) de Nosso Senhor Jesus Cristo” (2Fi 50). Essa formulação de Francisco, repetida por Clara, tem base no texto bíblico: “Aquele que fizer a vontade de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, irmã e mãe” (Mt 12,50; cf. Mc 3,35).
3 – A graça do “privilégio da pobreza”
Clara sente-se profundamente agraciada por Deus e por isso continuamente dá graças e louvores a Deus por todos os benefícios recebidos, conforme admoesta o apóstolo Paulo: “Em todas as circunstâncias dai graças porque esta é a vontade de Deus em Jesus Cristo” (1Ts 5,18).
Entre os vários benefícios outorgados por Deus, está o inestimável dom da vida de todas as criaturas. A vida de todos os seres emerge continuamente do mistério abissal da gratuidade divina que funda a existência finita sem porquê nem para quê, unicamente porque quer manifestar-se ad extra por amor às suas criaturas. Cada criatura é um ente (ens) que tem de receber o ser de Deus. É alhures, portanto, que lhe vem a vida, a inteligência, a vontade ou qualquer outra potencialidade.
Basicamente, foi por graça do Pai celeste que se iniciou nossa história terrena. Ser filho ou criatura significa ter a honra de ser portador da força e do vigor de alguém que tomou a iniciativa de criar-nos, fazer-nos surgir sem nenhum merecimento nosso. De fato, Deus ama com amor eterno cada criatura, não por causa dos méritos da beleza e bondade delas, mas ama simplesmente porque é esse o seu modo próprio e íntimo de ser. Deus é Amor gratuito; de graça é sua benevolência para com todos, até para com os ingratos e maus (Lc 6,35). Compreende-se, então, porque a vida de Clara tornara-se um hino de louvor e de ação de graças Àquele que a criou, guiou e protegeu: “E bendito sejais Vós, Senhor, que me criastes” (LSC 46,5).
Contudo, não somente o fato de existirmos é dom de Deus. Também nossas boas obras procedem do Sumo Bem, que se comunica a si mesmo no ser e operar de cada criatura. Razão pela qual ninguém poderia se apropriar e se vangloriar de suas boas obras, nem invejar as do seu próximo.
Agradeço ao Doador da graça, do qual cremos que procedem toda dádiva boa e todo dom perfeito (Tg 1,17), pois adornou-a com tantos títulos de virtude e a fez brilhar em sinais de tanta perfeição, para que, feita imitadora atenta do Pai perfeito (cf. Mt 5,48), mereça ser tão perfeita que seus olhos não vejam em você nada de imperfeito (2In 3-4).
No entanto, motivo de maior louvor e gratidão a Deus é que o ser humano seja capaz de corresponder à bondade de Deus que graciosamente comunica todo o seu ser a cada criatura. Em outras palavras, o ser humano é de uma dignidade especialíssima por ter sido criado e chamado por Deus a ser à imagem e semelhança de Deus.
Entre todas as graças recebidas da generosidade do Pai está, pois, o inestimável dom da vocação:
Entre outros benefícios que temos recebido e ainda recebemos diariamente da generosidade do Pai de toda misericórdia e pelos quais temos que agradecer ao glorioso Pai de Cristo, está a nossa vocação que, quanto maior e mais perfeita, mais a Ele é devida (TestC 2-3).
A alma humana, porque criada à imagem de Deus, é essencialmente receptividade e difusão gratuita de si mesmo. Recebemos nossa vida como dom e com a capacidade de doá-la gratuitamente aos outros à semelhança de Deus que renunciou à sua condição divina e assumiu a condição de Servo, em Jesus Cristo. E ao assumir a condição de Servo, até a morte de Cruz, agraciou-nos com a vocação de sermos semelhantes a Ele. Eis o sentido absoluto do nosso ser e viver: “Ele mesmo, o Pai celeste, que em seu Filho muito amado, Jesus Cristo, vem se dando a cada um de nós num convite e chamado para que a Ele nós também nos doemos do mesmo modo, num encontro de pura gratuidade” (DORVALINO, 2009, p. 216-217).
Sem dúvida, Clara intuiu de forma extraordinária a vocação divina do humano, ou seja, de nada reter para si mesmo para que totalmente nos receba aquele que totalmente se nos oferece (cf. Ord 29). Apropriar-se de qualquer coisa é, na perspectiva clariana, macular a imagem de Deus impressa na alma humana, bem como é ser ladrão, é praticar um roubo a Deus. Apoderar-se de alguma coisa é um ultraje, um abuso à bondade de Deus que distribuiu tudo com copiosa benignidade aos dignos e aos indignos.
Clara lutou até a morte, com todas as fibras do seu coração, pelo “privilégio” de viver em total pobreza. O “privilégio da Pobreza”, como foi chamada a bula de Inocêncio III, foi concedido às Damas Pobres em 1216.
O Papa escreveu:
Como é manifesto, desejando ardentemente dedicar-vos unicamente ao Senhor, abdicastes ao desejo das coisas temporais; por isso, tendo vendido e distribuído tudo aos pobres, proponde-vos a não ter absolutamente nenhuma propriedade, aderindo totalmente aos vestígios daquele que por nós se fez pobre, caminho, verdade e vida… Portanto, como haveis suplicado, corroboramos o vosso propósito da mais alta pobreza com o favor apostólico, concedendo-vos com a autoridade da presente que não possais ser por ninguém obrigados a receber propriedades” (Privilégio da Pobreza, In: FC, p. 142).
Clara amou a pobreza e fez dela o seu modo de vida porque o Filho de Deus, vindo a este mundo, escolheu ser pobre desde Belém até a Cruz. Na concepção de vida clariana, a alegria maior da pobreza consistia precisamente na possibilidade de restituir tudo ao Senhor, a exemplo de Jesus que, totalmente despojado na Cruz, restituiu sua vida (espírito) ao Pai: “E, inclinando a cabeça, entregou o espírito” (Jo 19,28-30).
Em síntese, Clara de Assis, ao não abrir mão do privilégio da pobreza, não apenas quis o privilégio de uma vida sem privilégios, mas o privilégio que Deus concedeu a cada ser humano de poder ser semelhante ao Filho encarnado do Pai eterno. O Filho encarnado foi pobre porque seu saber era a sabedoria do Pai, seu querer era a vontade do Pai, seu poder o poder do Pai e seu viver e seu amor eram o viver e o amor do Pai. Na radical pobreza e humildade, Clara participa do destino da vida, do sofrimento e da morte de Jesus Cristo:
Se você sofrer com ele, com ele vai reinar; se chorar com ele, com ele vai se alegrar; se morrer com ele (cf. 2Tm 2,11.12; Rm 8,17) na cruz da tribulação, vai ter com ele mansão celeste nos esplendores dos santos (Sl 109, 3). E seu nome, glorioso entre os homens, será inscrito no livro da vida (2In 21-22).
4 – Fidelidade criativa ao “ponto de partida”
Na Segunda Carta de Clara a Santa Inês de Praga, a serva das pobres damas louva imensamente a decisão de Inês que renunciara a todas as benesses de um casamento imperial para unir-se livremente em matrimônio com o Cristo pobre. Exorta-a, no entanto, de manter sempre viva em sua memória o propósito que fizera por uma pobreza radical por amor a Jesus Cristo. Por outras palavras, exortou-a de jamais perder de vista o princípio, isto é, o “ponto de partida” de sua decisão de unir-se em matrimônio com Jesus Cristo:
Não perca de vista seu ponto de partida, conserve o que você tem, faça o que está fazendo e não o deixe (cf. Ct 3,4) mas, em rápida corrida, com passo ligeiro e pé seguro, de modo que seus passos nem recolham a poeira, confiante e alegre, avance com cuidado pelo caminho da bem-aventurança. Não confie em ninguém, não consinta com nada que queira afastá-la desse propósito, que seja tropeço no caminho (cf. Rm 14,13), para não cumprir seus votos ao Altíssimo (Sl 49,14) na perfeição em que o Espírito do Senhor a chamou (2In 11-14).
Foi o irrestrito amor do Amante Jesus Cristo que a priori “seqüestrou” o coração de Inês de Praga e acendeu nela um ardentíssimo desejo de deixar todas as vaidades desta terra e unir-se ao Cordeiro imaculado como sua digníssima esposa. Clara exorta-a, então, que ela olhe, considere e contemple sempre esse Filho de Deus, que fixou terna e afetuosamente sobre ela o Seu olhar e suscitou nela uma resposta, consciente e livre, de amor total a Ele (cf. 2In 19-20).
Clara aconselhou a todas as Irmãs, de acordo com a última vontade de Francisco escrita para Santa Clara (cf. UV 1-3), que não se desviassem da pobreza por nenhum preço (cf. TestC 40s. 52-57). Para isso faz-se necessária uma contínua vigilância. Pois, as muitas solicitações do complexo mundo em que vivemos, tanto na ordem do ter, do poder, do saber, como na ordem do prazer, são contínuas ameaças ao “ponto de partida”. Dizendo de outra forma, as solicitações do mundo são tão sedutoras que não somente podem ofuscar, mas até mesmo fazer perder totalmente de vista aquela disposição inicial e o propósito de doar-se livre, responsável e criativamente aos irmãos e irmãs, sob a inspiração da vida e doutrina de Francisco de Assis.
Sem dúvida, a advertência de Clara à Inês estende-se a nós todos, discípulos e discípulas de Jesus Cristo. Pois, em tudo aquilo que fazemos, sentimos um forte apelo à satisfação dos nossos sentidos. A busca da auto-satisfação é, certamente, o maior de todos os perigos, que nos afasta gradativamente da afeição originária de nossa vocação, ou da nossa paixão por Jesus Cristo e compaixão pela humanidade.
Por fim, trazemos uma pequena história, atribuída a S. Kierkegaard, que ilustra muito bem como os muitos trabalhos e solicitações do mundo podem nos fazer perder de vista o “primeiro amor” de nossas vidas:
Certa vez, um europeu que viajava pelo Oriente conheceu uma linda mulher chinesa numa estação de trem. Encantou-se por ela, “amor à primeira vista”, mas tinha dificuldades de comunicar-se, pois não conhecia seu idioma. Quando voltou ao país de origem, ele começou a aprender chinês intensamente, para comunicar-se com sua amada. E assim o fez. Os dois correspondiam-se constantemente e alimentavam o amor de um pelo outro através das cartas. Enquanto isso, ele mergulhou no estudo da língua e da cultura chinesa, num esforço gigantesco, a ponto de tornar-se um especialista no assunto. Então, passou a ser requisitado em muitos lugares, para cursos, palestras e eventos. Não tinha mais tempo para escrever à sua amada, e ela nem sabia mais para onde escrever suas cartas, pois ele estava em constante viagem. O homem tornou-se um personagem importante. Mas o custo foi muito alto: esqueceu a mulher que o motivou a aprender o chinês.
Conclusão
Clara e Francisco são fundamentalmente duas versões distintas e complementares de uma mesma Forma de Vida instituída por Francisco: Observar o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Na esteira de Francisco, Clara e suas Irmãs se fizeram filhas e servas do altíssimo Pai celeste, e desposaram o Espírito Santo, escolhendo viver segundo a perfeição do santo Evangelho (FV 1-2). E dirigindo-se ao sucessor do bem-aventurado Francisco e a todos os frades da Ordem, recomenda e confia-lhes suas Irmãs, presentes e futuras, “para que nos ajudem a crescer sempre mais no serviço de Deus e principalmente a observar melhor a santa pobreza (TestC 51). E Francisco afetuosamente promete, por si e por todos os seus irmãos na Ordem, ter sempre por elas um diligente cuidado e especial solicitude (cf. RSC 6, 3-4).
Oxalá, Clara nos inspire hoje e sempre a colocarmos a mente, a alma e o coração no Espelho da Perfeição humana e divina: Jesus Cristo crucificado. Contemplar o Espelho da Perfeição significa deixar-se inflamar cada vez mais no ardor da caridade, da bondade, da compaixão e da misericórdia de Deus manifestada em Jesus Cristo. É isso que Clara deseja e propõe a Santa Inês e a cada um de nós: “Tomara que você se inflame cada vez mais no ardor dessa caridade” (4In 27). Pois, o ápice da vida contemplativa inaugurada por Clara de Assis é ver, considerar e agir no mundo com o amor maternal de Deus Pai. “O Senhor que deu o bom começo dê o crescimento (cf. 1Cor 3,6.7) e também a perseverança até o fim” (TestC 79).
SIGLAS
Escritos de São Francisco
2Fi = Carta aos Fiéis (Segunda Recensão)
FV = Forma de Vida para Santa Clara
Ord = Carta a toda a Ordem
RB = Regra Bulada
UV = Última Vontade a Santa Clara
Escritos de Santa Clara
Er = Carta a Ermentrudes
2In = Segunda Carta a Inês de Praga
3In = Terceira Carta a Inês de Praga
4In = Quarta Carta a Inês de Praga
RSC = Regra de Santa Clara
TestC = Testamento de Santa Clara
Fontes biográficas de Santa Clara
FC = Fontes Clarianas
BC = Bula de Canonização de Santa Clara
LSC = Legenda de Santa Clara
2LV = Legenda Versificada de Santa Clara
BIBLIOGRAFIA
FONTES CLARIANAS. Tradução, introduções, notas e índices de J. C. PEDROSO. Petrópolis: Vozes/CEFEPAL, 1994.
FONTES FRANCISCANAS E CLARIANAS. Apresentação Sergio M. Dal Moro; tradução Celso Márcio Teixeira et. al., Petrópolis: Vozes/FFB, 2004.
FASSINI, Frei Dorvalino. Forma de Vida da Ordem das Irmãs Pobres – Leitura e Comentários. Cascavel: Federação Sagrada Família dos Mosteiros da Ordem de Santa Clara do Brasil, 2009.
AUTOR: Dr. João Mannes, OFM
Doutor em Filosofia pelo Pontifício Ateneo Antonianum, Roma (1998).
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