quarta-feira, 29 de julho de 2015
Nossa Senhora dos Anjos da Porciúncula: O perdão de Assis.
Mensagem do Papa Paulo VI e Carta do Papa João Paulo II sobre a Porciúncula
Mensagem de Paulo VI
Ao Revmo. Padre Constantino Koser, Vigário Geral da Ordem dos Frades Menores, na passagem do 750º ano da “Indulgência da Porciúncula”, concedida pelo Papa Honório III a São Francisco.
Ao dileto filho, saudação e bênção apostólica. A sacrossanta igreja da Porciúncula, que São Francisco “amou acima de qualquer outro lugar no mundo” , tornou-se dia após dia mais célebre no mundo católico, porque ali o seráfico Pai maravilhosamente disse e fez muitas coisas, mas sobretudo porque foi enriquecida com especial indulgência, que por isso é chamada de “Indulgência da Porciúncula”, e que há muitos séculos é lucrada por aqueles que piedosamente visitam aquela igreja.
Nestes dias em que se celebra o 750º ano desta indulgência, segundo a tradição concedida a São Francisco por Honório III e muitas vezes confirmada, no decorrer dos séculos, por nossos Predecessores, é para Nós um prazer dirigir-nos aos fiéis cristãos que, continuando o costume e o uso dos antepassados, dirigem-se à Porciúncula, que refulge por insigne antigüidade, para ali procurarem uma mais perfeita e pronta reconciliação com Deus, onde “quem orar com devoção alcançará o que pedir” .
Para repetirmos as palavras que recentemente escrevemos movidos por solicitude pastoral, “somente podemos achegar-nos ao Reino de Cristo pela ‘metanoia’, isto é, mediante a íntima transformação de todo o homem, pela qual ele começa a pensar, a julgar e a regular sua vida sob o impulso da santidade e caridade de Deus, ultimamente manifestadas no Filho e plenamente comunicadas a nós” .
Ora, é exatamente aos fiéis, que levados pela penitência se esforçam por chegar a esta ‘metanoia’, para que, após o pecado, alcancem a santidade com a qual foram vestidos em Cristo pelo batismo, que a Igreja vai ao encontro também com a distribuição das indulgências, como que para sustentar com o materno abraço de sua ajuda a fragilidade de seus filhos enfermos.
Portanto, a indulgência não é o caminho mais fácil pelo qual possamos evitar a necessária penitência dos pecados; mas é antes um apoio que os todos os fiéis, humildemente conscientes de sua fraqueza, encontram no corpo místico de Cristo, que “colabora para a sua conversão com caridade, exemplo e orações” .
Um ensinamento claríssimo de tal vontade de penitência, unida à consciência da própria enfermidade nos foi deixado pelo próprio São Francisco, aquele que se apresenta a nós tão perfeitamente expresso como “o novo homem que foi criado por Deus em justiça e verdadeira santidade” . Com efeito, ele não só nos dá um exemplo de sua radical conversão a Deus e de uma vida verdadeiramente penitente, mas em sua Regra também manda que se admoestem os homens “a perseverarem todos na verdadeira fé e penitência, porque de outra forma ninguém poderá salvar-se” ; igualmente, na explicação da oração do Senhor, assim implora ao Pai que está nos céus: “perdoai-nos as nossas ofensas: por vossa inefável misericórdia e o inaudito sofrimento de vosso dileto Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, e pela poderosa intercessão da beatíssima Virgem Maria, bem como pelos méritos e súplicas de todos os vossos eleitos”.
Com razão, cremos que estas exortações de São Francisco, como também a admirável caridade que o levou a pedir para todos os fiéis a indulgência da Porciúncula tenham nascido do desejo de comunicar aos outros a doçura de espírito que ele mesmo experimentou após pedir a Deus o perdão dos pecados. É o que Frei Tomás de Celano, o principal escritor da vida deste homem seráfico, nos narra com delicadíssimas palavras: “Admirando a misericórdia do Senhor nos muitos benefícios que executava por seu intermédio, e desejando que o Senhor se dignasse mostrar-lhe o progresso que ele e os seus fariam na perfeição, foi para um lugar de oração, como fazia com freqüência. Lá ficou bastante tempo rezando com temor e tremor, diante do Senhor de toda a terra. Relembrando com amargura os anos que aproveitara mal, repetia sem cessar: ‘Deus, tende piedade de mim que sou pecador’. O íntimo de seu coração começou a extravasar sensivelmente uma alegria incontável e uma suavidade sem tamanho. Sentiu-se desfalecer, dissipando-se os temores e as trevas que se tinham juntado em seu coração por medo do pecado, e lhe foi infundida uma certeza da remissão de todos os pecados e uma confiança de que viveria da graça” .
Ora, o primeiro fruto da penitência é a consciência dos nossos pecados: “Se queres que Deus te perdoe, reconhece-te pecador. Sê juiz de teu pecado, não advogado” .
Por isso, fazendo-nos acusadores de nós mesmos diante da Igreja, à qual Jesus Cristo entregou as chaves do reino dos céus , receberemos a remissão da culpa e da pena; todavia, isso não deve retardar o caminho de nosso retorno a Deus. Devemos assumir o jugo de Cristo, sua cruz que encontramos ou que abraçamos voluntariamente pela mortificação; pelas boas obras e sobretudo pelos frutos da caridade fraterna, é preciso que demonstremos a sinceridade de nosso retorno à casa do Pai e nossa mais plena e nova inserção no corpo de Cristo, que é a Igreja.
O fiel penitente que faz essa renovação do espírito, como dissemos acima, não está só, pois “de certo modo é purificado pelas obras de todo o povo e é lavado e limpo interiormente pelas lágrimas de todo aquele que é redimido do pecado pelas orações e lágrimas do povo. Porque Cristo deu à sua Igreja o poder de redimir um fiel por meio de todos, o deu a ela, que mereceu a vinda do Senhor para que todos fossem redimidos por meio de um” .
A indulgência que a Igreja concede aos penitentes é manifestação da admirável comunhão dos Santos, que une misticamente no vínculo da caridade de Cristo a Beatíssima Virgem Maria e o conjunto dos cristãos triunfantes no céu ou que permanecem no purgatório ou que peregrinam na terra. Com efeito, a indulgência que é concedida por ação da Igreja diminui ou abole totalmente a pena que, de algum modo, impede o homem de conseguir uma mais estreita união com Deus; por isso, nesta especial forma da caridade eclesial, o fiel penitente encontra um válido auxílio para despir-se do velho homem e revestir-se do novo, “que vai se renovando para o conhecimento segundo a imagem de quem o criou”.
Em base a estas reflexões, desejamos que o 750º aniversário da concessão desta indulgência seja de tal modo celebrado que a Porciúncula seja realmente o santuário do pleno perdão e da garantida paz com Deus.
Bem sabemos que no decorrer de tantos séculos grande número de peregrinos acorreram à igreja da Porciúncula, através de longas e difíceis viagens, para encontrarem nos braços da Rainha dos Anjos, a quem a capela e a basílica da Porciúncula é dedicada, a serenidade de espírito pelo perdão dos pecados e pela renovação da graça divina. Sabemos também que ainda hoje, mas especialmente na festa da dedicação da mesma capela, dia em que a indulgência da Porciúncula é estendida a todas as igrejas da Ordem Franciscana, muitos peregrinos chegam à Porciúncula, não levados pela curiosidade ou pelo prazer, mas somente para pedir a Deus o perdão dos pecados, para depois sentir-se mais na intimidade do Pai celeste. Realmente, são estes os peregrinos que verdadeiramente nos mostram o significado da grande peregrinação da vida do homem: uma longa e árdua caminhada que nos conduz a Deus.
Realmente, seria de desejar que as peregrinações, individuais ou de grupos, tornadas mais freqüentes pela facilidade dos meios de transporte, não perdessem o caráter de piedade e de penitência, mas conservassem este sentido de um esforço profundamente religioso.
Queira Deus que não seja interrompida a secular tradição da peregrinação à igreja da Porciúncula, devotamente empreendida por nosso imediato Predecessor João XXIII, mas antes cresça o número dos fiéis que, neste santuário vão ao encontro de Cristo, Senhor misericordioso, e de sua Mãe, que é poderosa intercessora junto a Ele.
Esperando que tudo aconteça conforme o nosso desejo, a ti, dileto filho, a toda a família franciscana e a todos que se reunirão no santuário da Porciúncula para celebrar solenemente este aniversário, com prazer concedemos no Senhor a bênção apostólica.
Dada em Roma, junto a São Pedro, no dia 14 do mês de julho, de 1966, quarto ano de nosso Pontificado.
PAPA PAULO VI
Carta do Papa João Paulo II sobre a Porciúncula
Ao Reverendíssimo Padre
Giacomo Bini
Ministro geral
da Ordem Franciscana dos Frades Menores
1. A reabertura da Basílica e da Capela da Porciúncula, após os restauros realizados em conseqüência do terremoto de 1997, oferece-me a agradável oportunidade de dirigir uma afetuosa saudação a você, Irmão amado, e à Comunidade franciscana que, em Assis, desempenha um precioso serviço eclesial e zela pelo decoro dos lugares caros à memória do Poverello de Assis e pelos fiéis e peregrinos que chegam à terra de Francisco e Clara para uma experiência espiritual intensa. Os pés dos fiéis se detêm às portas de Assis, que, por tantas maravilhas de misericórdia ali realizadas, com razão é definida como “cidade predileta do Senhor (LegSC 21).
Hoje, a Capela da Porciúncula e a Patriarcal Basílica que a guarda reabrem suas portas para receber as multidões de pessoas atraídas pela saudade e pelo fascínio da santidade de Deus, copiosamente manifestada no seu servo Francisco. O Poverello acreditava que “a graça divina podia ser concedida aos eleitos em todos os lugares; mas sabia, por experiência, que o lugar de Santa Maria da Porciúncula estava repleto de uma graça mais fecunda [...] e, por isso, muitas vezes dizia aos frades: [...]Este lugar é verdadeiramente santo, morada de Cristo e da Virgem, sua Mãe” (EspPf 83). Para Francisco, a humilde e pobre igrejinha tornou-se a imagem de Maria Santíssima, a “Virgem feita Igreja” (SaudVM 1), uma humilde e “pequena porção do mundo” (2Cel 18), mas indispensável para que o Filho de Deus se fizesse homem. Por isso o Santo invocava Maria como tabernáculo, casa, manto, serva e Mãe de Deus (cf. SaudVM 4-5).
Exatamente na Capela da Porciúncula, que ele havia restaurado com as próprias mãos, Francisco, iluminado pelas palavras do capítulo 10 do Evangelho de Mateus, decidiu abandonar a precedente breve experiência eremítica, para dedicar-se à pregação entre o povo, “com a simplicidade de sua palavra e a generosidade de seu coração”, como atesta o primeiro biógrafo, Tomás de Celano (1Cel 23). Assim, deu início a seu típico ministério itinerante. Mais tarde, é na Porciúncula que se dá a vestição de Santa Clara e se funda a Ordem das “Pobres Damas de São Damião”. Aqui também, Francisco impetrou de Cristo, mediante a intercessão da Rainha dos Anjos, o grande perdão ou “indulgência da Porciúncula”, confirmada por meu venerável Predecessor, o Papa Honório III, a partir de 2 de agosto de 1216. A partir de então teve início a atividade missionária, que levou Francisco e seus frades a alguns países muçulmanos e a várias nações da Europa. Aqui, enfim, cantando, o Santo recebeu “nossa irmã a Morte corporal” (CantS 12).
2. A igrejinha da Porciúncula conserva e difunde uma mensagem e uma graça muito especiais da experiência do Poverello de Assis; mensagem e graça que perduram até hoje e que constituem uma fonte de apelo espiritual para os que se deixam fascinar por seu exemplo. Nesse sentido, é importante o testemunho de Simone Weil, a filha de Israel fascinada por Cristo: “Enquanto estava sozinha na pequena capela românica de Santa Maria dos Anjos, incomparável milagre de pureza e onde Francisco rezou tantas vezes, pela primeira em minha vida, alguma coisa mais forte do que eu me obrigou a ajoelhar-me” (Autobiografia espiritual).
A Porciúncula é um dos lugares mais veneráveis do franciscanismo, caro não só à Ordem dos Menores, mas também a todos os cristãos que aqui, como que esmagados pela intensidade das memórias históricas, recebem luz e estímulo para uma renovação de vida, sob o sinal de uma fé mais enraizada e de um amor mais genuíno. Por isso, para mim é muito caro destacar a mensagem especial que brota da Porciúncula e da indulgência a ela ligada. É uma mensagem de perdão e de reconciliação, isto é, de graça, que, se estivermos bem dispostos, a bondade divina derrama sobre nós, porque Deus é verdadeiramente “rico em misericórdia” (Ef 2,4). Como não reavivar diariamente em nós a humilde e confiante invocação da redentora graça de Deus? Como não reconhecer a grandeza desse dom que ele nos ofereceu em Cristo “uma vez para sempre” (Hb 9,12) e nos repropõe continuamente com imutável bondade? É o dom do perdão gratuito, que nos dispõe à paz com Ele e com nós mesmos, infundindo-nos renovada esperança e alegria de vida. Considerando tudo isso, é fácil compreender a austera vida de penitência de Francisco e por que somos convidados a ouvir o apelo a uma constante conversão, que nos separe de uma conduta egoísta e, com decisão, oriente nosso espírito para Deus, ponto focal de nossa existência.
3. Tenda do encontro de Deus com os homens, o Santuário da Porciúncula é casa de oração. “Quem rezar com devoção neste lugar conseguirá o que pedir” (1Cel 106), gostava de repetir Francisco, depois que pessoalmente havia feito experiência disso. Dentro dos velhos muros da pequena igreja, todos podem saborear a doçura da oração em companhia de Maria, a mãe de Jesus (cf. At 1,14), e experimentar sua poderosa intercessão. Naquele edifício restaurado com suas mãos, o homem novo Francisco ouviu o convite de Jesus que o chamava a modelar a própria vida “segundo a forma do santo Evangelho” (Test 14) e a percorrer as estradas dos homens, anunciando o Reino de Deus e a conversão, em pobreza e alegria. Dessa forma, aquele lugar santo se tornara, para Francisco, “a tenda do encontro” com o próprio Cristo, Palavra viva de salvação. A Porciúncula é, particularmente, “terra do encontro” com a graça do perdão, que amadureceu numa íntima experiência de Francisco que, como escreve São Boaventura, “um dia, quando, [...] a chorar, deplorava amargamente os anos passados, sentiu-se invadido pela alegria do Espírito Santo e teve a certeza de que seus pecados tinham sido plenamente perdoados” (LegM III,6). Querendo que todos participassem de sua pessoal experiência da misericórdia de Deus pediu e obteve a indulgência plenária para aqueles que, arrependidos e confessados, peregrinassem à igrejinha para receber a remissão dos pecados e a superabundância da graça divina (cf. Rm 5,20).
4. A todos que, em autêntica atitude de penitência e reconciliação, seguem as pegadas do Poverello de Assis e recebem a indulgência da Porciúncula com as requeridas disposições interiores, desejo que experimentem a alegria do encontro com Deus e a ternura do seu amor misericordioso. Este é o “espírito de Assis”, espírito de reconciliação, de oração, de respeito mútuo que, de coração, espero que seja para todos um estímulo à comunhão com Deus e com os irmãos. É o mesmo espírito que marcou o encontro de oração pela paz com os representantes das religiões do mundo, que acolhi na Basílica de Santa Maria dos Anjos, a 27 de outubro de 1986; um acontecimento do qual guardo uma viva e grata recordação.Com estes sentimentos, também eu me dirijo em peregrinação espiritual para esta celebração da indulgência da Porciúncula na restaurada Basílica da Bem-aventurada Virgem, Rainha dos Céus, na iminência do Grande Jubileu da encarnação de Cristo. A Nossa Senhora, filha eleita do Pai, confio aqueles que em Assis e em todas as partes do mundo querem receber hoje o “Perdão de Assis”, para fazer do próprio coração uma morada e uma tenda para o Senhor que vem.
A todos a minha bênção, Castel Gandolfo, 1° de agosto de 1999, vigésimo primeiro de Pontificado.
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