sexta-feira, 10 de junho de 2016

Uma Igreja Misericordiosa para um Mundo Dilacerado.




Frei Estêvão Ottenbreit

Em três ocasiões o Papa Francisco deu sinais do quanto o tema “misericórdia” lhe é caro. No dia 17 de março de 2013, quando pela primeira vez rezou o “Angelus”, na praça de São Pedro, ele se referiu ao livro do cardeal Kasper, cujo título é: “Misericórdia. Fundamento do Evangelho – Chave para a vida cristã”. E acrescentou: “Este livro me fez muito bem”. Algo semelhante ocorreu quando interpretou, numa entrevista à uma revista jesuítica, seu lema: “Miserando atque elegendo”.

O Papa disse naquela ocasião que o gerúndio “miserando” é difícil de traduzir para o italiano e o espanhol e que ele gostaria de traduzi-lo com um outro gerúndio (que não existe) “misericordiando”. E o terceiro exemplo é de outra entrevista em que o Papa declara: “O que a Igreja hoje precisa é da capacidade de curar feridas e acalentar os corações das pessoas. Proximidade e solidariedade. Eu vejo a Igreja como um hospital de campo depois de uma batalha”.

Um coração misericordioso

Tendo diante dos olhos estas intuições, não nos pode surpreender a importância que este tema da misericórdia desempenha no dia a dia do magistério do Papa. Naturalmente sabemos que a misericórdia faz parte do núcleo da revelação bíblica porque faz parte do âmago do Deus Trindade. Na sua visão antropológico-teológica, São Tomás de Aquino vê a misericórdia para com o nosso próximo como a virtude das virtudes (cf. Summa Theologiae II-II q. 30, a. 4), indicando que a misericórdia possui um componente tanto afetivo como efetivo.

O Ano Santo da Misericórdia começou no dia 8 de dezembro de 2015. A data foi escolhida “porque é cheia de significado na história recente da Igreja” (MV, 4). O Ano Santo começou com a abertura da Porta Santa “no cinquentenário da conclusão do Concílio Ecumênico Vaticano II”, um concílio convocado pelo Papa João XXIII com o intuito de abrir as janelas da Igreja para permitir que o vento renovador do Espírito Santo pudesse entrar. Na encíclica “Evangelii Gaudium”, o Papa Francisco repete o convite para sermos uma Igreja de portas abertas (EG 46). Abrir o coração e a própria vida é um caminho para ser misericordioso.

Misericórdia ad intra

A constituição dogmática “Lumen Gentium” do Vaticano II declara a respeito da Igreja:

“Cristo foi enviado pelo Pai para “evangelizar os pobres, sanar os contritos de coração” (Lc 4,18), “procurar e salvar o que tinha perecido” (Lc 19,10): semelhantemente a Igreja cerca de amor todos os afligidos pela fraqueza humana, reconhece mesmo nos pobres e sofredores a imagem de seu Fundador, pobre e sofredor. Faz o possível para mitigar-lhes a pobreza e neles procura servir a Cristo.” (LG 8)

Este critério se constitui em fio condutor para a ação e a atitude da Igreja diante de variadas situações. A Bula papal nos lembra que a Igreja é convocada a criar “Oasis de misericórdia”. E não só a Igreja em geral, mas “nas nossas paróquias, nas comunidades, nas associações e nos movimentos – em suma, onde houver cristãos.” (cf. MV 12)

Dois exemplos, ambos difíceis e importantes, de como este princípio pode ser concretizado. O primeiro se refere ao aborto. Como já sabemos, o Papa decidiu que durante o Ano Santo a todos os sacerdotes é dado o poder de absolver o pecado do aborto, pressupondo o arrependimento profundo” (cf. carta ao arcebispo Fischiella do 1º de setembro de 2015). Este gesto naturalmente não minimiza ou nega a tragédia do aborto que é “profundamente injusta”. Mas, os sacerdotes, diz o Papa, devem encontrar palavras de acolhida juntamente com uma reflexão que ajude a compreender a gravidade do pecado cometido. Ao mesmo tempo, devem indicar o caminho de conversão verdadeira que leve a compreender o misericordioso perdão do Pai que renova tudo através de sua presença. O amor de Deus não é rigoroso nem permissivo! Isto vale também para a atitude misericordiosa da Igreja.

O segundo exemplo é semelhante. Visa à realidade complexa das famílias com os fracassos, sofrimentos e situações sem saídas. A Igreja – sendo Mãe – reconhece a necessidade de um cuidado e acompanhamento pastorais nas mais variadas e complexas situações: casais que apenas legalizaram sua união civilmente ou que simplesmente vivem juntos; famílias feridas; mães solteiras; divorciados que contraíram segundas núpcias e pessoas com orientação homossexual. A misericórdia de Deus deve concretizar-se na Igreja de Jesus Cristo e de maneira palpável e convincente, deve levar a “caritas in veritate” às pessoas que vivem nestas situações.

Misericórdia ad extra

Enquanto a Constituição “Lumen Gentium” se refere à própria Igreja, por assim dizer “ad intra”, uma outra Constituição, a “Gaudium et Spes” dirige o nosso olhar para a Igreja no mundo, “ad extra”. A misericórdia faz parte de sua identidade, de suas múltiplas relações, enfim de sua vida. A misericórdia é o eixo central da ação missionária da Igreja, porque toda a realidade humana, pessoal e social, deve buscar o coração divino do Pai.

“O Senhor é o fim da história humana, ponto ao qual convergem as aspirações da história e da civilização, centro da humanidade, alegria de todos os corações e plenitude de todos os seus desejos.” (GS 45)

As palavras iniciais desta constituição – muitas vezes repetidas – gravaram-se na nossa memória e no nosso coração:

“As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo. Não se encontra nada verdadeiramente humano que não lhes ressoe no coração.” (GS 1)

Como levar esta mensagem ao mundo de hoje?

O eco poderia ser percebido nas mais variadas situações difíceis da vida, principalmente na assim chamada “Cultura da exclusão” na qual vivemos. Existiriam muitos temas, mas vamos nos limitar a falar de um. É sabido por todos que, principalmente na Europa, manifestam-se algumas crises desafiadoras (em escala menor as experimentamos também na América Latina e em outras partes do mundo). Crise dos refugiados, crise de falta de condições humanas, crise política…

O que significa misericórdia nestas situações?

Se encararmos com realismo e sinceridade a nós mesmos e à realidade ao redor de nós, reconheceremos que a mensagem do Evangelho da misericórdia é capaz de despertar a consciência das pessoas e impede que nos acostumemos ao sofrimento dos outros e nos ajuda a elaborar respostas que se fundamentam nas virtudes teologais da fé, da esperança e da caridade e se concretizam nas obras espirituais e materiais de misericórdia.

Crise dos refugiados

Não há dúvida que existem muitas iniciativas particulares: pessoas, famílias, comunidades e movimentos populares que demonstram solidariedade, que têm sua origem num coração misericordioso. Mesmo alguns países mostraram grande abertura em acolher refugiados e que fazem assim entrever suas raízes cristãs. De outro lado, devemos reconhecer que a resposta pessoal sozinha não resolve suficientemente.

Dimensão política!

Misericórdia deve concretizar-se em leis. Principalmente quando se trata de refugiados, deve-se aplicar o direito internacional que resulte em acordos obrigatórios para todos os Estados. A preocupação e o cuidado pelos refugiados que fogem da guerra, não podem depender apenas da decisão de alguns políticos, mas dependem das exigências de acordos internacionais e dos direitos humanos. Enfim, a misericórdia pede que nos empenhemos no processo de paz, pondo fim às guerras de todos os tipos nos países de origem dos refugiados.

Conclusão

“Misericordiae Vultus” é um convite para sermos misericordiosos “como o Pai”. Assim como o pai na parábola do Evangelho, segundo Lucas, continuamente olha para ver se seu filho um dia voltará (Lc, 15,20), somos convidados a olhar os nossos irmãos: sua situação, suas necessidades, dar-lhes atenção e acolhida, descobrir seu rosto e sua história. Santo Inácio de Loyola chama a nossa atenção dizendo que o amor deve ser colocado “mais nas obras do que nas palavras” (exercícios espirituais 230). As obras de misericórdia são nossa resposta ao grito do mundo dilacerado.


Fonte: http://www.franciscanos.org.br/

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