segunda-feira, 10 de outubro de 2016
Artigo - Ilustre Mãe da Misericórdia Divina
Por Irmã Lina Boff
O modo de agir de Deus Pai
Na História da salvação da humanidade destacam-se personagens que tiveram uma missão de grande alcance. No Cristianismo foram de grande significado a figura dos patriarcas, seus descendentes e das matriarcas com sua discreta e nem sempre reconhecida participação originária e original na construção dessa História salvífica.
Na linhagem das matriarcas irrompe a figura de uma mulher dentro do plano divino que é revelado em Cristo Jesus: Deus reserva um lugar singular a esta mulher, aquela que foi a Mãe de Jesus, o Filho do Pai e o Salvador misericordioso do mundo.
O Tratado da teologia mariana atribui à pessoa de Maria de Nazaré uma missão específica no âmbito de todos os acontecimentos da História do Povo de Israel. Ela desempenha uma função intimamente ligada ao mistério misericordioso de salvação realizado por Cristo Jesus.
O Apóstolo afirma que Deus nos escolheu antes da criação do mundo para sermos santos e imaculados aos seus olhos (cf. Ef 1,4) pela graça misericordiosa trazida por seu Filho que doou sua vida por todos; todas as pessoas, portanto, são chamadas a serem santas e imaculadas.
A misericórdia é maior que o pecado
Seguindo o ensinamento da Exortação Pontifícia do Papa Francisco, mais conhecida como Bula do Ano Santo da Misericórdia, Maria é invocada como a Mãe da Misericórdia porque participa da misericórdia de Deus que envia seu Filho Jesus para que Ele tenha misericórdia para com toda a humanidade. Jesus se inclinou sobre a nossa miséria, teve compaixão, solidarizou-se conosco para que fôssemos fiéis à sua Aliança. Mas não só. A misericórdia e a clemência do Filho de Deus quis que sua Mãe, Maria de Nazaré, participasse com Ele desse serviço divino.
Por isso Maria é invocada como a Mãe da misericórdia, porque participa da misericórdia que Jesus tem para com toda a humanidade. No parágrafo 3 da Bula, o papa nos comunica que ele escolheu a festa da Imaculada Conceição, que se celebra em dia 8 de dezembro, para abrir a Porta Santa do Ano da Misericórdia porque Maria foi a primeira pessoa que recebeu de Deus a graça misericordiosa de ser isenta de pecado.
A festa da Imaculada guarda um simbolismo que a nossa percepção nem sempre alcança. Primeiro, porque a festa da Imaculada, como Mulher bíblica, abre o tempo do Advento, o tempo litúrgico mariano forte da nossa Liturgia. Segundo, porque a figura de Maria é símbolo e também epifania simbólica, isto é, Maria é invocada e cultuada a partir de um conjunto de símbolos que tecem a tradição cristã e religiosa do nosso povo. Além disso situa o povo para além de si mesmo e o leva a viver e a desejar um mundo diferente daquele que vive. Esta simbólica é um dos fatores mais poderosos da inserção da fé popular na realidade definitiva em que acredita e alimenta uma esperança que faz a história desse povo.
A experiência devocional simbólica acrescenta à fé mariana popular uma dimensão de relação com uma Maria extra-racional, imaginativa ou até mesmo fantasiosa, mas cheia de fé e de esperança. Tal relação se dá entre a pessoa de fé, a comunidade que acredita e o mundo cósmico. Diante de tal fato, a reflexão nos leva a criar uma nova antropologia continental, a qual se inscreve dentro de um reconhecimento capaz de criar no povo a consciência de que é ele que deve construir a sua história, criar sua cultura e construir sua identidade cristã e religiosa. A espécie humana, tratada como não-pessoa, dá lugar à virada antropológica humana inclusiva e libertadora pois, não há mais lugar para a submissão e o domínio. Faltando esta intuição de cada ser humano na interpretação dos elementos simbólicos marianos, vistos à luz da fé, nada é percebido em Maria como epifania simbólica.
Com Maria toda a humanidade deixa de estar sujeita ao bel prazer do mal. Como se vê, Deus quis precisar de Maria para nos mostrar que a misericórdia será sempre maior do que qualquer pecado, e ninguém pode colocar um limite ao amor de Deus que perdoa, nos ensina o Papa. Maria, portanto, eleva a humanidade ao seu lugar mais alto da criação.
A humanidade toda está em busca de sua perfeita identidade e de sua plena realização como ser humano e como pessoa chamada por Deus à santidade, através do batismo, vivendo em Comunidade de fé. Todos nós vivemos o profundo desejo de paz, fraternidade, solidariedade e justiça. Com isso queremos superar a violência, a morte prematura, a corrupção que nos envergonha e a miséria que nos tira a dignidade de filhos e filhas de Deus, que usa de sua benevolência de Pai e Mãe das misericórdias.
Entretanto, a humanidade faz a experiência do fracasso, da amarga contradição das coisas da vida, dos mecanismos de ódio, divisão e destruição, todos golpes que tentam diminuir a nossa alegria e a vontade de viver uma vida plena e feliz. Nem por isso morre a esperança que alimentamos por um mundo mais humano e reconciliado com toda a criação.
O povo de Israel, mais do que outros povos, viveu a dimensão da esperança. Para ele o futuro guarda o segredo da humanidade nova. Nós estamos caminhando nesta direção, somos um povo cheio de esperança e guardamos dentro do mistério humano-divino que foi plasmado pelo Criador, aquela esperança trazida pela graça misericordiosa que Jesus Cristo que nos doou com sua vida.
Maria, a Mulher profética e misericordiosa
A Carta Pontifícia de Francisco nos ensina ainda que a fé vê em Maria concebida sem pecado, a História dessa misericórdia de Cristo, cheia de esperança, e a realização da nossa busca de vida plena. No parágrafo 24 da Bula proclamada para o Ano da Misericórdia, nosso Papa Francisco continua apresentando Maria como a Mulher profética que canta as maravilhas da misericórdia divina que se estende de geração em geração sobre as pessoas que temem o Senhor da misericórdia (cf. Lc 1,50).
Nós somos esta geração que, como pessoas batizadas, temos a missão de continuar estendendo esta misericórdia divina da qual Nossa Senhora da Conceição Imaculada participa e com ela se aproxima de todos os povos. “Maria atesta que a misericórdia do Filho de Deus não conhece limites e alcança a todos, sem excluir ninguém”.
Como Mãe da misericórdia divina, Maria ao pé da cruz, junto com o discípulo que Jesus ama, entra na profundidade do mistério de Deus. Jesus revela este mistério do Pai derramando a misericórdia do perdão e da clemência sobre toda carne (cf. Joel 2, 17). As dores de Maria ao pé dessa cruz, na sua função de Mãe da misericórdia, chegam a assumir dimensões universais (Cf. Marialis cultus, 37).
Não é sem motivo que a Carta Pontifícia atesta que tudo na vida de Maria foi plasmado pela presença da misericórdia feita carne. Ao pé da cruz, Maria, juntamente com o discípulo amado, “é testemunha das palavras de perdão que saem dos lábios de Jesus”.
O perdão supremo oferecido ao bom ladrão mostra-nos até onde pode chegar a misericórdia de Deus, ou seja, a todos os que O crucificaram: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”. O soldado que ajudou na crucificação de Jesus, quando este expirou, glorificava ao Deus da misericórdia com estas palavras: “Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus” (cf. Mc 15,39).
Ninguém, como Maria, conheceu a profundidade do mistério de Deus feito homem. A Mãe do Crucificado Ressuscitado entrou no santuário da misericórdia divina porque participou, intimamente, do mistério do amor de seu filho Jesus. A própria palavra misericórdia evoca um comportamento de ternura e o termo em hebraico, usado na Bíblia, significa entranhas, palavra que remete ao amor visceral materno.
Maria mostra-se grande e paciente ao dar o primeiro passo em nossa direção. A sua gratuidade não espera de cada pessoa necessitada que tenha lá seus méritos. Mas avança devagar de acordo com o compasso de Deus que vai se revelando ao seu Filho. É nesse sentido que Maria, como Mãe da misericórdia divina, se torna discípula de Jesus antes que ser sua Mãe.
Todas as pessoas, neste Ano da Misericórdia, são convocadas a terem entranhas de misericórdia para com todos os refugiados de tantas guerras. Dizemos tantas porque nem todas são comunicadas pela grande mídia. Somos pessoas convocadas a ter entranhas de misericórdia ficando ao pé das infinitas cruzes da humanidade, como Maria ainda aí está, sobretudo junto às crianças e às mulheres que nada têm a ver com tanto sangue derramado e nem com tantas doenças e epidemias que assolam os povos esquecidos por tantos Continentes.
Concluindo
A História da salvação é tecida no terreno da fé e no gesto de misericórdia que os nossos pais e mães tiveram para com seu povo ao longo dos milênios de espera pelo Messias e através dos séculos marcados pela profecia e pela audácia das matriarcas que se colocaram do lado do povo para salvá-lo da ira do mal encarnado.
Esta fé e este gesto de misericórdia toma sua expressão na histórica Mulher, Maria de Nazaré, cultuada pela fé do nosso povo como a Imaculada Conceição, festa litúrgica que indica ser Maria a primeira criatura, filha de Adão e Eva como nós, a abrir-se à graça da redenção.
Destaca-se a força da simbólica popular que leva a fazer uma experiência da graça divina quando o povo invoca aquela que foi a Mãe de Deus e a discípula-mãe de seu filho Jesus, o Filho de Deus. Em Maria concebida sem pecado o povo lê, na fé, a História da misericórdia divina.
Nesse contexto, Maria, a Mulher profética do Magnificat, canta as maravilhas da misericórdia divina que se estende de geração em geração. Do Magnificat ao pé da cruz, a participação de Maria na misericórdia de seu filho chega a assumir dimensões universais. A Mãe do Crucificado Ressuscitado entrou no santuário da misericórdia divina porque participou, intimamente, no mistério do seu amor.
Salve, ilustre mãe da misericórdia divina, volva a nós a ternura dos seus olhos e, como Arca da Aliança, nunca se canse de nos fazer pessoas dignas de contemplar o rosto da misericórdia do seu filho Jesus!
Por isso te dirigimos a oração antiga e sempre nova da Salve Rainha!
Irmã Lina Boff
Professora emérita da PUC-Rio
Professora do Centro Loyola de Cultura e Fé
Pastoralista na sua Paróquia
Professora visitante da Pontificia
Facoltà Antonianum di Roma
Conferencista e escritora
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