segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Artigo - A Misericórdia no Novo Testamento.


Frei José Clemente Müller

Tema: Jesus de Nazaré: quem tem a última palavra é a Misericórdia!

Introdução

A vida de Jesus de Nazaré transmitida pelos 4 Evangelistas (Mt, Mc, Lc e Jo) é um verdadeiro caleidoscópio de grandeza tão intensa que dificilmente podemos captá-la na sua totalidade. É possível, sim, detectar elementos e segmentos muito profundos, verdadeiros, diferenciados, originais, que ora pendem para o lado humano deste homem Jesus de Nazaré, ora para outro lado da gangorra: a dimensão da divindade do Filho de Deus, o Cristo. Chama a atenção a sua humanidade, sua originalidade, a sua coragem; tudo envolve os grandes temas de sua vida: o amor, o perdão, a mansidão, a humildade, a misericórdia e tantos outros temas e aspectos de sua vida.

1) A misericórdia na compreensão e contexto neotestamentário
A compreensão de misericórdia no NT está enraizada e caminha na esteira do contexto do AT. Em hebraico é muito forte o conceito de misericórdia; vem da palavra– rahamim;  significa ter entranhas como uma mãe e possuir seios como uma mulher1.  Em outras palavras, é o amor visceral materno de Deus. Amor que só uma mãe sente pelo seu filho. É comover-se diante do mal do outro porque se sente intimamente afetado e por isso tem disposição de ser magnânimo, clemente e benevolente para com este outro.  Deus não ama só com o coração, e isso já é extraordinário. Mas espantoso mesmo, chega a ser avassalador, quando dizemos que Deus nos ama até mesmo com suas vísceras. Este é o diferencial de Jesus de Nazaré, do Deus feito homem. Ele é bom até no mais íntimo dele mesmo, aquilo que os antigos chamavam de vísceras. Mas Deus  não é só bom para quem o ama, mas convive magnanimamente com os ingratos, os maus e perversos. Não abandona aquele que lhe virou as costas. Como no-lo recorda o Evangelista Mateus: “Ele ama os ingratos e maus” (cfr. Mt 7,11). Consequentemente, ama o filho pródigo que regressa envergonhado, narrado na parábola de Jesus (Lc 15,11-32). Perdoa-lhe toda uma história de descaso. Mostra-se misericordioso e magnânimo, preparando-lhe um grande banquete. O único censurado é o filho bom que ficou em casa. Ele era somente bom, não tinha misericórdia em face dos desvios do irmão.2

Observemos que o NT tem uma solene ‘overture’ que é testemunhada pelo Evangelista Lucas, e que vale para toda a vida do Filho de Deus. Essa porta de abertura é protagonizada em dois hinos iniciais: primeiro nos lábios de Maria, quando visita sua prima Isabel: “Grandes coisas fez em mim o Onipotente – cujo nome é Santo- e Sua misericórdia se estende de geração em geração sobre aqueles que o temem” (Lc 1,49-50). Depois na boca de Zacarias, o sumo Sacerdote que, cheio do Espírito Santo, vê o irromper da história da salvação pela misericórdia. Canta um hino, e por duas vezes grita a misericórdia de Deus-Pai: “Assim mostrou misericórdia a nossos pais, recordando sua antiga Aliança” (Lc 1,72); e ainda no versículo 78 canta que o “Sol nascente” trará a misericórdia: “pela bondade misericordiosa do nosso Deus, que sobre nós fará brilhar o Sol nascente”. Tanto um como outro hino estão no contexto das promessas e alianças de Javé Deus, no AT, com o seu povo, e para o futuro uma promessa e perspectiva de nova era, novos tempos. São dois hinos que fazem irromper o NT. Daí que os judeus desenvolveram uma mística imaginando a era messiânica como a era da misericórdia. Em nossa linguagem moderna, diríamos: esperamos uma sociedade, uma família, uma Igreja, um planeta, uma cultura da misericórdia. Uma utopia a ser buscada e um sonho a ser realizado. É a misericordia quem vai ditar uma ética política, uma transparência “nas contas” (na economia), uma sinceridade nas relações e encontros de um com outro, especialmente dentro de uma comunidade. A misericórdia tem a última palavra. Significa que, na sociedade, na Igreja, numa comunidade religiosa, num partido político quem tem a última palavra é a misericórdia. É ela, a misericórdia, quem dita o ser e o agir humano, assim como o é a natureza e o proceder de Deus-Amor. Quando falta essa, falta o perdão; se na vida de alguém ou numa comunidade não há compaixão e perdão como atitude de vida e misericórdia como modo de ser da pessoa, é porque falta a transparência, a carência de amor tomou conta e a desumanização inebriou os convivas.

O Evangelho de Lucas é chamado pela tradição da Igreja e pelos exegetas como o Evangelho da Misericórdia3. Todo homem que volta para Deus é, para Jesus, um filho reintegrado no amor de Deus” (Lc 15,22).

O tema da Misericórdia é uma das Bem-aventuranças de Mateus: “Bem aventurados os misericordiosos porque alcançarão misericórdia” (Mt 5,7)4. Não é apenas o programa do Reino de Deus, mas misericórdia é a cara de Deus. É sua identidade e natureza: “Quero misericórdia e não sacrifícios”, grita Deus através do livro do profeta Oseias 6,6 e retomado em Mt 9, 13, onde apresenta a nova ordem no mundo e nos costumes trazida por Jesus de Nazaré: “Os fariseus perguntaram aos discípulos: ‘Por que vosso mestre come junto com cobradores de impostos e pecadores?’ e ele, que os ouvira, respondeu-lhes: “Não são os sadios que  têm necessidade de médico mas os doentes. Ide e aprendei o que significam as palavras: ‘quero misericórdia e não sacrifícios’.  Porque não vim para chamar os justos mas os pecadores”. (Mt 9,11-13).

Acenamos, acima, que não separamos o AT do NT em seu conceito de misericórdia. Segundo  o livro do Eclo 28,4 uma das faltas dos pecadores é que não têm misericórdia para com os seus semelhantes e por isso não podem esperar perdão da parte de Deus5. “Também os pecadores, sofrendo os castigos da ira de Deus, esperam e imploram misericórdia, em virtude da aliança, de Javé (Ex 34,6; Nm 14,9; Jer 3,12; Sl 25,7.10; 51,3; 78, 38). A primeira reação de Javé ao pecado é a sua ira;  fala-se num castigo até a terceira e quarta gerações (Ex 34,6); no mesmo texto, porém, afirma-se que a sua misericórdia permanece até a milésima geração”6.

A liturgia da Quarta-feira de Cinzas, em verdade, é uma liturgia que fala da penitência, do jejum, oração, esmola, cruz, mas sempre em chave de leitura e interpretação da misericórdia. A primeira leitura da Santa Missa, na liturgia da Palavra, lemos no profeta Joel: “Agora, diz o Senhor, voltai para mim com todo o vosso coração com jejuns, lágrimas e gemidos; rasgai o coração e não as vestes, e voltai para o Senhor, vosso Deus.  Ele é benigno e compassivo, paciente e cheio de misericórdia, inclinado a perdoar o castigo”.  Quem sabe ele se volta para vós e vos perdoa, e deixa atrás de si a bênção, oblação e libação para o Senhor nosso Deus?”7

No contexto neotestamentário, a misericórdia se realiza efetivamente em Cristo e, mais do que no AT, é exigida misericórdia dos homens entre si, segundo o exemplo divino. O próprio Cristo, Jesus de Nazaré, é o coração onde pulsa a misericórdia, e por isso se tornou o ícone da misericórdia. Entre tantos fatos e palavras da vida do Filho de Deus, na terra, a parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37) merece uma observação atenta do jeito como Deus entende a misericórdia8.

Não podemos deixar de considerar o grande e insuperável comentário de Santo Agostinho ao Evangelho de João quando, meditando o episódio da mulher pecadora (= adúltera) de Jo 8,1-11, no final do relato o grande Doutor da Igreja conclui: “E foram se afastando um após outro, a começar pelos mais velhos, ficando só a pecadora e Jesus, ou seja: a miséria e a misericórdia”.9

2) Misericórdia: o êxtase de Deus-homem.
“Hoje mesmo estarás comigo no paraíso!” (Lc 23,43). Esta voz do Filho de Deus na cruz, no momento mais trágico da existência humana, em sua agonia, prestes a dar o último suspiro é, não só o inusitado de Deus, mas seu êxtase divino que revela e aponta o lado humano de  Deus. No ano 2000, o cardeal François Van Thuan, que havia sido prisioneiro em Saigon, sua diocese, nos anos de 1975-1988, 13 anos de cárcere recluso numa penitenciária de máxima segurança, pregou os Exercícios Espirituais ao curiais do Vaticano e ao Papa João Paulo II. Uma das conferências que muito impressionou a todos foi sobre alguns elementos da “contramão” de Jesus10. Chamou a atenção a meditação quando falava do perdão sem limites, comentando o ladrão na cruz que pede: “Jesus, lembra-te de mim quando estiveres no paraíso”(Lc 23,42). Jesus desaponta não só ao ladrão, mas a cada um de nós. Pois, como segue refletindo o Cardeal vietnamita, “se fosse eu, ter-lhe-ia respondido: “Não vou te esquecer, mas os teus crimes devem ser pagos com pelo menos vinte anos de purgatório”, mas Jesus responde-lhe: ‘…hoje mesmo estarás comigo no Paraíso!’” (p. 28) Incrível, Jesus esquece todos os pecados daquele homem, e só tem um olhar: o perdão, a misericórdia.

Nesta mesma esteira dos evangelhos conhecemos o episódio de Lc 7,36ss da pecadora que invade a casa de um fariseu pois sabia que Jesus se encontrava aí. Cai aos seus pés, por detrás, lava os pés com suas lágrimas, cobre-os de beijos, enxuga-os com seus cabelos e  banha-os com perfume. O Nazareno não pergunta nada a ela sobre o seu passado escandaloso ou não, mas diz simplesmente: “…seus numerosos pecados estão perdoados, porque ela demonstrou muito amor” (Lc 7,48.47).

Em síntese: Jesus não só perdoa e perdoa a todos, mas até mesmo esquece que perdoou, e por isso ama sempre. Isto é misericórdia no coração de Deus. E o Deus de Jesus Cristo nos ensina que não basta e não é suficiente sermos bons, importa sim sermos misericordiosos!

3) Deus é ainda maior que tudo isso…
São João, aquele que é tido como o autor das cartas joaninas e do livro do Apocalipse, faz dois balanços sérios em seus escritos: o primeiro balanço diz respeito à Igreja nascente e às comunidades que estão se formando na Ásia Menor: repreende cinco comunidades (= igrejas) e elogia duas delas (Sardes e Filadefia); encontramos esse balanço nos cap. 2 e 3 do livro da Revelação. O segundo é um balanço pessoal, com um grande exame de consciência, no final de sua vida. Encontramos em 1Jo 3,20 a grande esperança de um amor interior: “Se teu coração (= tua consciência) te acusa, lembra que Deus é maior que teu coração”. Aqui praticamente o Discípulo Amado entrega toda a sua vida nos braços do Deus misericordioso, que é um Deus-amor, Deus encarnado, Pai e amigo. E este é maior que tudo. A misericórdia, para João, é o ombro acolhedor de Deus. Esta é, praticamente, a grande síntese da misericórdia de Deus de todo o NT.

Conclusão
Misericórdia é o extraordinário de Deus e seu diferencial; é ela quem melhor faz o discurso da exuberância de Deus. É o rosto e hálito do Deus-Amor. Um discurso que não se limita em palavras, sentenças, mas uma ação e atitude de amor que acontece em nós e em Deus. Se há alguma coisa que o universo conspira e cobra do Criador é a misericórdia. Essa mesma conta será cobrada de nós no juízo final: Vinde, achegai-vos benditos de meu Pai… ou: Afastai-vos, malditos para o fogo eterno!

Quando refletimos sobre a vida cristã ou o carisma franciscano, e neste o segmento da misericórdia, não queremos voltar historicamente ou arqueologicamente aos tempos cronológicos de São Francisco ou de Jesus de Nazaré, para uma repetição de gestos e fatos. Devemos, sim, buscar a leitura da sociedade de hoje, do nosso mundo, no qual estamos imersos e absorvidos, e sermos um sinal e sacramento da misericórdia dentro dessa realidade, e aí, então, encontrarmos e sentirmos a mesma vibração que ele, Francisco e seus primeiros companheiros no séc. XIII, tinham diante desta atitude (= de ser misericordioso) para com todos, como meio de maior intimidade e amor ao Divino Pai Eterno, na Pessoa de Jesus Cristo encarnado, e unidos ao Espírito Santo de Amor. Assim sendo, Misericórdia não é uma palavra de linguística mas um compromisso assumido como cristãos, e mais especificamente como frades franciscanos. E o Ano Santo Extraordinário, Ano da Misericórdia, nos encoraja ao retorno ao Evangelho.

Notas

1 Cfr. Dizionario Kittel – AT.
2 Cfr.Boff,L., “Brasa sob cinzas” – Estórias do anticotidiano, Ed. Record, Rio/S.Paulo, 1996,p.50.
3  Cfr. Lancellotti, A., e Boccali, G., “O Evangelho Hoje” – Segundo Lucas, Ed.Vozes, Petrópolis, (1979),
4 A Bíblia Vozes traduziu: “Felizes os que se compadecem porque alcançarão misericórdia” .
5 Sobre o conceito e visão bíblica do AT e NT sobre misericórdia, veja em  A.Van den Born, Dicionário Enciclopédico da Bíblia, Vozes, Petrópolis/Porto (1971); col.994-995
6 Id. ibid. col.994
7  Jl 2,12-14.
8 Recomendamos aqui o estudo atraente e bem detalhado, atualizado e amplo sobre a Parábola do bom Samaritano em Ratzinger, J., (Papa Bento XV), Jesus de Nazaret, Planeta Ed., S.Paulo, 2007,  p.174-179.
9 Cfr. Sant’Agostino,  Commento al Vangelo e alla prima Epistola di SAN GIOVANNI. Nuova Biblioteca Agostiniana , Città Nuova Editrice, 1968, Roma.
10 Cfr. Van Thuan, François, “Testemunhas da Esperança”, Cidade Nova, Vargem Grande Paulista (SP), 3ª ed. 2004.


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