sábado, 15 de outubro de 2016

Artigo - A misericórdia, sentida e louvada no Antigo Testamento.



Frei Ludovico Garmus

No Antigo Testamento (AT), o termo “misericórdia” é sinônimo de bondade, compaixão e amor. Para alguns, buscar o tema “misericórdia” no AT seria “procurar agulha em palheiro”. No entanto, negar que o Deus do AT seja misericordioso – como o fez o herege Marcião – seria afirmar que o povo de Israel não teve uma experiência da misericórdia divina. Ao contrário, Israel sentiu a presença de um Deus fiel, que perdoa e ama seu povo ao longo de toda a sua história. Esta presença foi marcante, sobretudo, em momentos de crise, como no êxodo, na peregrinação pelo deserto, na “conquista” de Canaã, no período dos juízes e da monarquia, bem como na destruição de Jerusalém e no exílio. Nestes momentos, a fé no Deus que elegera Israel como seu povo era abalada; mas eram igualmente uma ocasião para recuperar a fé no Deus misericordioso.

No deserto, quando faltou água, os israelitas questionaram a Moisés: afinal de contas, “o Senhor está, ou não está, no meio de nós?” E na falta de alimento, puseram em cheque todo o projeto divino de libertação, reclamando contra Moisés e Aarão: “Trouxestes-nos ao deserto para matar de fome toda esta gente!” Em resposta aos clamores do povo e à súplica de Moisés e Aarão, Deus tira água do rochedo e faz cair um bando de codornas, além do maná, sobre o acampamento (Ex 16–17). Israel é um povo de cabeça dura. Mesmo assim, Deus caminha com seu povo, deixa-se aplacar pelas súplicas de Moisés e o perdoa (Ex 33–34). Israel experimenta a misericórdia de Deus. Um “Deus compassivo e clemente, lento para a cólera, rico em amor e fidelidade”. Um Deus que “conserva a bondade por mil gerações e perdoa culpas, rebeldias e pecados…” (Ex 34,6-7).

Os profetas denunciam os pecados do rei, dos juízes e da classe dominante, e ameaçam com o castigo. Mas também apresentam um Deus de coração materno, sempre disposto a perdoar: “Fui eu que ensinei Efraim a caminhar; eu os tomei nos braços, mas não reconheceram que eu cuidava deles! Com vínculos humanos eu os atraía, com laços de amor; eu era para eles como quem levanta uma criancinha a seu rosto, eu me inclinava para ele e o alimentava” (Os 11,3-6).

Por ocasião do exílio, o povo que morava em meio às ruínas de Jerusalém e os exilados na Babilônia também reclamavam: “O Senhor me abandonou, meu Deus me esqueceu”! O profeta responde: “Pode uma mulher esquecer seu bebê, deixar de querer bem ao filho de suas entranhas? Mesmo que alguma o esquecesse, eu não te esqueceria”. Deus ama Jerusalém e seu povo como um noivo ama sua noiva. No futuro, Jerusalém vai pedir que seja aumentado seu espaço para abrigar os muitos filhos que ganhará (cf. Is 49,14-21).

Durante e depois do exílio, meditando sobre a presença misericordiosa de Deus em sua conturbada história, os autores sagrados redigiram a maior parte dos livros do AT. Neles se respira um Deus misericordioso, porque Israel viveu a experiência da misericórdia divina. Nesta perspectiva, por exemplo, Israel vê as origens do mundo, das civilizações e do próprio povo escolhido. Assim, desde as primeiras páginas da Bíblia manifesta-se a misericórdia de Deus para com todas as suas criaturas. Toda a obra da criação é fruto da bondade de Deus. Em Gn 1, ao separar as águas do chão firme, prepara um ambiente propício, uma “casa” onde possam viver todas as criaturas vivas: na água, os peixes; no ar, as aves; e no chão firme, as plantas, os animais e o ser humano. Para regular o ritmo da vida de suas criaturas durante o dia, Deus criou o sol (cf. Sl 19,1-6), e para a vida noturna, criou a lua e as estrelas (Sl 8; 104). Como ponto culminante de sua criação Deus criou o ser humano (Adam) à sua imagem e semelhança, “macho e fêmea ele os criou”. Abençoou-os para que fossem fecundos, povoassem a terra e tivessem o domínio “sobre os peixes, as aves e tudo que vive e se move sobre a terra”.

Providenciou, também, a alimentação para o ser humano e todos os seres vivos. Por fim, “Deus viu tudo quanto havia feito e achou que era muito bom” (Gn 1,26-28.31). Israel vê toda a criação como fruto da bondade de Deus. A segunda narrativa da criação (Gn 2) preocupa-se com o ambiente agrícola em que vive o ser humano. Deus cria o ser humano (Adam) a partir do pó da terra e o coloca num jardim plantado por Deus, cheio de árvores de todo tipo. Cria os animais, a partir da mesma terra, mas o Adam não encontra entre eles uma companhia adequada. Deus, então, vê que “não é bom que o ser humano esteja só” e cria um ser semelhante a ele (ela). Ao se reconhecer nela, ele exclama: “Desta vez sim, (ela, ou ele) é osso de meus ossos e carne de minha carne”. Agora, o ser humano passa a ser “homem e mulher”, um ser social, comunitário. Deus viu na união entre homem e mulher uma expressão profunda de seu amor, porque os criou à sua imagem e semelhança.

Os Salmos são a resposta de Israel ao amor fiel e misericordioso de Deus, vivido e louvado: “Aleluia, porque o Senhor é bom: cantai louvores ao seu nome porque é amável…” (Sl 135). No Sl 136, Israel louva os benefícios recebidos da bondade divina ao longo de sua história. Para Israel, viver é poder louvar o amor fiel e ativo do Senhor:

Aleluia! Louva, ó minha alma ao Senhor! * Louvarei o Senhor enquanto eu viver, * cantarei louvores a meu Deus enquanto eu existir… Ele que fez o céu e a terra, * o mar e tudo quanto neles existe. * Ele que guarda fidelidade para sempre, * faz justiça aos oprimidos, * dá pão aos que têm fome. * O Senhor solta os prisioneiros, * o Senhor abre os olhos aos cegos, * o Senhor endireita os encurvados, o Senhor ama os justos, * o Senhor protege os migrantes, * ampara o órfão e a viúva, * mas confunde o caminho dos ímpios. * O Senhor reinará eternamente; ele é teu Deus, ó Sião, de geração em geração. Aleluia!

O Deus que louvamos nos Salmos é o mesmo Deus que inspirou o anúncio da boa-nova aos pobres (Lc 4,14-21) e a proclamação das bem-aventuranças (Mt 5,3-12). “Sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito”

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