terça-feira, 8 de novembro de 2016
Artigo - A misericórdia nos sermões de Santo Antônio
Frei Clarêncio Neotti
Tema sempre presente
O tema da misericórdia está muito presente nos Sermões de Santo Antônio. Tanto a misericórdia de Deus para com as criaturas, quanto a misericórdia do homem para com seus semelhantes. De modo acentuado, a misericórdia de Jesus Salvador e de sua santa Mãe Maria, a rainha da misericórdia. Tanto a misericórdia no singular, como virtude necessária, quanto as misericórdias no plural, visíveis nas boas ações de ajuda, especialmente nas chamadas ‘obras de misericórdia’. Tanto a misericórdia como fonte de outras boas qualidades, quanto misericórdia como consequência de atitudes fortes como o perdão, a compaixão e a obrigatoriedade de reparar maldades cometidas.
Que é misericórdia?
Ao menos duas vezes Santo Antônio define o que seja a misericórdia. No sermão do quarto domingo depois de Pentecostes, escreve: “Misericordioso é aquele que tem compaixão da miséria alheia”. Santo Antônio usa propositadamente a palavra ‘miséria’ em contraposição à ‘misericórdia’, coisa que já fizera Santo Agostinho, seu mestre, no livro A Cidade de Deus, 9, 5: “O campo da misericórdia é tão grande quanto o da miséria humana; por isso a misericórdia é a compaixão pela miséria alheia”. Nas Confissões, várias vezes, Santo Agostinho aproxima as duas palavras. No sermão para o 16º domingo depois de Pentecostes, Santo Antônio cunha esta belíssima frase: “Ó Senhor, se me retiras a tua misericórdia, caio na miséria eterna”.
A segunda vez que Santo Antônio define a misericórdia encontro-a no sermão para o 22º domingo depois de Pentecostes. Santo Antônio comenta a parábola do devedor cruel (Mt 18,21-30), contada por Jesus, quando Pedro lhe perguntou quantas vezes deveria perdoar ao irmão pecador. Vamos ao texto: “A misericórdia do Senhor purifica a alma dos vícios, enche-a da riqueza dos carismas, cumula-a com as delícias celestiais. A primeira mortifica o coração contrito. A segunda suaviza-o para o amor. A terceira com a esperança dos bens supernos, inunda o coração com uma espécie de celeste orvalho. E isto é óbvio pela tríplice interpretação da palavra misericórdia. De fato, misericórdia quer dizer o que dá o coração miserável e isto convém à primeira misericórdia. Igualmente misericórdia significa aquele que depõe o rigor do coração e isto convém à segunda. Em terceiro lugar, misericórdia traduz-se por uma espécie de suavidade admirável que inunda o coração e isto convém à terceira. Compadecido, logo, com a tríplice misericórdia daquele servo, deixou-o ir livre e perdoou-lhe a dívida”.
O latim medieval de Santo Antônio não é fácil de traduzir. Além do mais, suas palavras muitas vezes têm sentido subliminar. Vou tentar dizer o texto acima com palavras minhas: Jesus se compadeceu do empregado, perdoou-lhe a dívida e deixou-o ir em paz. Jesus agiu assim, porque era Deus misericordioso. A misericórdia de Deus age de três maneiras: purifica o coração arrependido, enriquece-o com o amor e o enche de alegria, refazendo nele a esperança dos bens eternos. O vício torna o coração miserável. A misericórdia o limpa. A misericórdia leva Deus a não ser rigoroso, mas benigno. A misericórdia leva Deus a ser suave com o pecador. A suavidade, a generosidade e o perdão fazem parte integrante da misericórdia.
O Pai das Misericórdias
Recolho primeiro alguns textos de Santo Antônio, que falam diretamente da misericórdia de Deus Pai, ou seja, daquele Deus de quem Paulo na carta aos Efésios disse “ser rico em misericórdia, porque muito nos amou e nos deu a vida em Cristo” (Ef 2,4). Para Santo Antônio, a misericórdia de Deus é sem limites. Lembra esta verdade no sermão do 3º domingo da Quaresma: “A misericórdia de Deus é maior do que toda a malícia do pecador”. “E porque a misericórdia de Deus não tem medida, ele ouvirá a tua oração”.
Longamente fala Antônio da misericórdia divina no sermão do 16º domingo depois de Pentecostes, comentando a ressurreição do jovem de Naim e sua restituição à mãe viúva. Ele vê no jovem morto a figura de toda a humanidade, morta porque estava no pecado e não tinha a vida em plenitude de Jesus Cristo: “Na restituição do pecador convertido à sua mãe (a Jerusalém celeste) há a profundidade da misericórdia divina. Ó profundidade da divina clemência, longe da compreensão da inteligência humana, porque não tem conta a sua misericórdia. Tendo Deus disposto, como se diz no livro da Sabedoria (11,21), todas as coisas com medida, conta e peso, não quis incluir nestas leis com estes limites a sua misericórdia, antes, ela é que os inclui e os circunda. Por toda a parte está a sua misericórdia, mesmo no inferno, porque não pune tanto quanto exige a culpa do delinquente. Da misericórdia do Senhor, diz o salmista (119,64), está cheia toda a terra, e todos nós, miseráveis, recebemos de sua plenitude. Pela misericórdia de Deus, sou aquilo que sou (1Cor 15,10). Sem ela, nada sou. Ó Senhor, se me retiras a tua misericórdia, caio na miséria eterna. A tua misericórdia é a coluna do céu e da terra. Se a retirares, tudo cairá. Mas as tuas misericórdias são muitas, na frase de Jeremias (Lm 3,22), porque não fomos destruídos. Muitas, na verdade! Quantas vezes pecamos mortalmente, de fato, pela alma ou pelo corpo, e não fomos imediatamente sufocados pelo demônio. Tantas vezes devemos atribuir à infinita misericórdia do Senhor o ainda vivermos! É que ele espera a nossa conversão, e por isso não permite sermos sufocados pelo demônio. Logo, por tantas misericórdias devemos dar graças ao Pai misericordioso; quantas vezes pecamos e não fomos eliminados! Ó miseráveis, porque somos ingratos perante tamanha misericórdia? Deu-lhes tempo de penitência, diz Jó (24,23), e a criatura abusa disto para se ensoberbecer. E entesoura para si ira para o dia da ira. Compadece-te, pois, da tua alma, porque as misericórdias do Senhor são antigas. Ele não se esquece de ter compaixão de quem se considera digno de compaixão”.
No sermão para o 14º domingo depois de Pentecostes, acentua muito a infinita misericórdia de Deus, que se manifesta em todas as circunstâncias: “O justo, se for cortado pelo machado do pecado mortal, não deve desesperar da misericórdia de Deus, que é maior que a sua miséria, mas ter esperança, porque tornará a reverdecer pela penitência”.
Jesus, encarnação da Misericórdia
Para Santo Antônio a misericórdia do Pai se manifesta, sobretudo, na encarnação e na paixão de Jesus: “A misericórdia, isto é, a Encarnação e a Paixão, devemos tê-la diante dos olhos do nosso entendimento”, escreveu no sermão do 16º domingo depois de Pentecostes. Jesus é a encarnação da misericórdia divina na Anunciação, misericórdia que extrapola todos os limites no Calvário e na manhã de Páscoa e se derrama sobre nós, abrindo-nos as portas do céu. Santo Antônio fala da misericórdia de Jesus particularmente na ressurreição do jovem de Naim (Lc 7,11-17), na ressurreição da filha de Jairo e na mesma página a cura da hemorroíssa (Lc 8,40-56), nas parábolas do bom samaritano (Lc 10,30-37), do filho pródigo (Lc 15,11-32), do devedor perdoado (Mt 18,21-27) e da mulher Cananeia, que lhe pediu pela filha possessa (Mt 15,21-28). Observe-se que são quase todos comentários a páginas de Lucas, o evangelista da misericórdia.
Santo Antônio vê na figura do samaritano a pessoa de Jesus: “O samaritano é o Senhor, feito homem por nós. Empreendeu a viagem da vida terrena e veio até junto do machucado, veio feito semelhante ao homem e reconhecido na condição de homem, aproximou-se e se compadeceu de nós, e nos concedeu a sua misericórdia (Sermão para o 13º domingo depois de Pentecostes). Pouco depois, no mesmo sermão, lembrando-se do corpo místico que formamos com Cristo (1Cor 12,27), escreve: “Vemos que o estrangeiro de Jerusalém, para quem a misericórdia era obrigatória, foi mais próximo que o sacerdote ou o levita, ainda que tivessem o mesmo sangue. Ninguém nos é mais vizinho do que aquele que nos curou as feridas, porque faz uma só cabeça com os membros”.
Na explicação do evangelho que fala da ressurreição da filha de Jairo (24º domingo depois de Pentecostes), Santo Antônio se detém sobre o momento em que Jesus a pega pela mão: “Tomou-a pela mão. Jesus toma a nossa mão na sua quando, por sua misericórdia, nos dá o querer, o conhecer e o poder. A mão desta misericórdia reconstrói a pessoa quando dá o conhecer e o querer; acaba-a, quando dá o poder”. Ou seja, Jesus não faz as coisas pela metade. Refaz nossa inteligência e a nossa vontade, para que possamos compreender o bem e segui-lo, porque a pessoa viva normal precisa da inteligência e da vontade. Mais, no mesmo sermão, acrescenta: “Com a mão da misericórdia livra-nos do poder das trevas e transfere-nos para o reino de seu amor”.
No segundo sermão para o segundo domingo da Quaresma, Santo Antônio demora-se em analisar por que Jesus se calava diante do pedido insistente da mulher pagã, nas proximidades de Tiro e Sidônia: “Jesus não respondeu palavra à Cananeia. Ó arcano do divino conselho! Ó profundo e imperscrutável mistério da eterna sabedoria! O Verbo, que no princípio existia junto do Pai, por meio do qual tudo foi feito, não responde à mulher Cananeia, à alma penitente, uma palavra! O Verbo, que torna soltas as línguas das crianças, que dá a boca e a sabedoria, não responde uma palavra! Ó verbo do Pai, criador e conservador de tudo, providência e sustento de quanto existe, responde-me ao menos uma palavra para mim, mulher infeliz, a mim, penitente! E provo, com a autoridade do teu profeta Isaías, que deves responder. De fato, o Pai, a teu respeito, promete aos pecadores, dizendo em Isaías (55,11): A palavra que sair de minha boca não tornará para mim vazia, mas fará tudo quanto eu tenha querido, e surtirá os seus efeitos naquelas coisas para as quais eu a enviei. E que quis o Pai? Certamente que recebesses o penitente, lhe respondesses uma palavra de misericórdia. Acaso não disse: O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou? Filho de Davi, tem, portanto, piedade de mim! Responde uma palavra, ó Verbo do Pai! Igualmente provo com a autoridade do teu profeta Zacarias que deves ter piedade e responder. Assim de ti ele profetizou (13,1): Naquele dia haverá para a casa de Davi uma fonte aberta, para lavar as manchas do pecador. Ó fonte de piedade e de misericórdia, que nasceste de terra bendita da Virgem Maria, que foi da casa e família de Davi, lava as manchas do pecador! Por que é que o Verbo não responde uma palavra? Certamente para excitar o ânimo do penitente a maior arrependimento e estímulo de dor maior. Por isso, dele fala a esposa nos Cânticos (5,6): Procurei-o e não o encontrei. Chamei por ele e não me respondeu”.
Misericordiosos como o Pai
Muitas vezes Santo Antônio liga a misericórdia de Deus ao arrependimento, à dor de ter pecado. No sermão acima chega a dizer que Deus demora em manifestar misericórdia, para que o pecador tenha tempo de se arrepender. O pecador tem, portanto, parte ativa, no recebimento da misericórdia. No sermão para o 22º domingo depois de Pentecostes, observa a respeito do penitente: “O peso da dor, a capacidade de amar, o comprimento da esperança, a humildade do coração chamam a misericórdia”.
Santo Antônio não só falou muito da misericórdia de Deus Pai, não só mostrou que toda a pregação de Jesus está baseada na misericórdia, mas lembrou insistentemente que devemos ser misericordiosos como o Pai; que a vida do cristão é uma vida trançada de obras e de pensamentos misericordiosos. E até chegou a dizer que a misericórdia de Deus pode estar condicionada à misericórdia que temos e fazemos, como Jesus condicionou o perdão de Deus ao perdão que nós dermos. Assim escreve no 23º domingo depois de Pentecostes: “Quem é misericordioso para com os outros terá para ele a misericórdia de Deus”. No sermão para o 16º domingo depois de Pentecostes, Santo Antônio pede ao povo de nunca esquecer a misericórdia de Deus: “Como o rei Davi, deverás ter sempre a misericórdia diante dos teus olhos”. No sermão para a Páscoa, comenta a sarça ardente. Primeiro, diz que o nome ‘Moisés’ significa ‘varão da misericórdia’. Depois, observa que a chama sai do meio de uma sarça e comenta: a sarça é o pobre, coberto de espinhos, atribulado, faminto, nu e aflito. E acrescenta: “Que estes espinhos punjam teu coração, para que tenhas misericórdia do necessitado”.
Maria, mãe de Misericórdia
Ainda uma palavra sobre Maria, mãe e rainha da misericórdia. Santo Antônio fala de Maria e se mostra teólogo mariano em ao menos 16 sermões. Assim, escreve no segundo sermão para o terceiro domingo da Quaresma: “Pecador, refugia-te em Maria. Ela é a cidade do refúgio. Como outrora, o Senhor separou cidades de refúgio para os que tivessem cometido crimes involuntários (Nm 35,11-14), assim agora a misericórdia do Senhor deu refúgio de misericórdia ao nome de Maria até para os homicidas voluntários”. E afirma no sermão para a festa da Purificação: “Maria é chamada mãe de misericórdia. É misericordiosa para os miseráveis, é esperança para os desesperados”.
No sermão para a festa da Assunção, falando das razões de Deus para levá-la em corpo e alma ao céu, exclama: “Ó inestimável dignidade de Maria! Ó inenarrável sublimidade da graça! Ó inescrutável profundidade da misericórdia! Nunca tanta graça nem tanta misericórdia foram nem podem ser concedidas a um anjo ou a um homem, como a Maria Virgem Santíssima, que Deus Pai quis fosse mãe de seu próprio Filho, igual a si, gerado antes de todos os séculos”.
Orações para pedir Misericórdia
Muitos outros textos de Santo Antônio sobre a misericórdia podiam ser citados. Alguns baseariam uma conferência inteira, como a relação entre misericórdia e confiança, misericórdia e penitência, misericórdia e julgamento. Não resisto transcrever três orações do Santo, tiradas de três sermões diferentes.
A primeira é do domingo da Quinquagésima:
“Sê para mim um Deus protetor, reza o Salmo (31,3-4). Com teus braços estendidos na cruz, protege-me e defende-me, como a galinha protege e defende os pintinhos debaixo das asas. No teu lado, traspassado pela lança, encontre eu lugar de refúgio, onde possa esconder-me dos inimigos. Se eu cair, possa eu me abrigar junto de ti e não de outrem. Sê para mim, que sou cego, um guia: dá-me a tua mão misericordiosa e alimenta-me com o leite da tua graça”.
Busco a segunda no sermão para o 3º domingo depois de Pentecostes:
“Senhor, olha para mim e tem compaixão de mim, porque me vejo só e pobre. Olha para o meu abatimento e para o meu trabalho e perdoa todos os meus pecados. Olha para mim com olhar da misericórdia, tu que olhaste para Pedro. Tem compaixão de mim! Perdoa-me os pecados! Acompanha-me, porque me sinto sozinho! Vejo-me pobre e vazio, vem encher o meu vazio”.
Tomo a terceira do sermão para o 4º domingo depois de Pentecostes:
“Para podermos chegar à glória eterna, roguemos ao Senhor Jesus Cristo, Pai misericordioso, que nos infunda a sua misericórdia, a fim de termos misericórdia para conosco e para com os outros. E não julguemos nem condenemos ninguém. Perdoemos aos que pecam contra nós e demos a todos os que nos pedem o que temos e o que somos. Isto se digne conceder-nos aquele que é bendito e glorioso pelos séculos dos séculos. Assim seja!”.
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