domingo, 24 de julho de 2016

Cartas de Santa Clara de Assis



Carta 4 a Inês de Praga

 Introdução

Não há nenhuma dúvida de que esta é a última carta. Clara já tem junto de si Inês de Assis, que voltou de Monticelli no início de 1253. E se despede "até o trono da glória!". Nesta carta, além de chegar ao ponto mais alto em todas as suas propostas de espiritualidade e de contemplação, Clara toca o extremo de seu carinho por Inês de Praga, com expressões surpreendentes e muito originais. Para citar a Segunda Carta a Inês de Praga, vamos usar a sigla 4 CtIn seguida pelos números de 1 a 40, que são os parágrafos da carta.



Carta 4 a Inês de Praga

1. À outra metade da minha alma, singular sacrário do meu cordial amor, à ilustre rainha, esposa do Cordeiro, Rei eterno, dona Inês, minha caríssima mãe e filha, especial entre todas as outras,

2. eu, Clara, serva indigna de Cristo e inútil servidora das suas servas que vivem no mosteiro de São Damião em Assis,

3. desejo saúde e que possa cantar o cântico novo diante do trono de Deus e do Cordeiro, juntamente com as outras santas virgens, e seguir o Cordeiro onde quer que ele vá (Ap 14,3-4).

4. Ó mãe e filha, esposa (cfr. Mt 12,50; 2Cor 11,2) do Rei de todos os séculos, embora não tenha escrito mais vezes, como a minha alma e a sua igualmente desejam e de certa forma até necessitariam, não estranhe

5. nem pense que o fogo do amor está ardendo menos no coração de sua mãe.

6. A dificuldade é esta: faltam portadores e o perigo nas estradas é conhecido.

7. Mas agora, podendo escrever à minha querida, alegro-me e exulto com você, ó esposa de Cristo, na alegria do espírito (cfr. 1Ts 1,6).

8. Pois, como Inês, a outra virgem santa, você desposou de modo maravilhoso o Cordeiro imaculado (1Pd 1,19) que tira o pecado do mundo (Jo 1,29), deixando todas as vaidades desta terra.

9. Feliz, decerto, é você, que pode participar desse banquete sagrado para unir-se com todas as fibras do coração àquele

10. cuja beleza todos os batalhões bem-aventurados dos céus admiram sem cessar,

11. cuja afeição apaixona, cuja contemplação restaura, cuja bondade nos sacia,

12. cuja suavidade preenche, cuja lembrança ilumina suavemente,

13. cujo perfume dará vida aos mortos, cuja visão gloriosa tornará felizes todos os cidadãos da celeste Jerusalém,

14. pois é o esplendor da glória (Hb 1,3) eterna, o brilho da luz perpétua e o espelho sem mancha (Sb 7,26).

15. Olhe dentro desse espelho todos os dias, ó rainha, esposa de Jesus Cristo, e espelhe nele, sem cessar, o seu rosto,

16. para enfeitar-se toda, interior e exteriormente, vestida ecingida de variedade (Sl 44,10),

17. ornada também com as flores e roupas das virtudes todas, ó filha e esposa caríssima do sumo Rei.

18. Pois nesse espelho resplandecem a bem-aventurada pobreza, a santa humildade e a inefável caridade, como, nele inteiro, você vai poder contemplar com a graça de Deus.

19. Preste atenção no princípio do espelho: a pobreza daquele que, envolto em panos, foi posto no presépio (cfr. Lc 2,12)!

20. Admirável humildade, estupenda pobreza!

21. O Rei dos anjos, o Senhor do céu e da terra (cfr. Mt 11,25) repousa numa manjedoura.

22. No meio do espelho, considere a humildade, ou pelo menos a bem-aventurada pobreza, as fadigas sem conta e as penas que suportou pela redenção do gênero humano.

23. E, no fim desse mesmo espelho, contemple a caridade inefável com que quis padecer no lenho da cruz e nela morrer a morte mais vergonhosa.

24. Assim, posto no lenho na cruz, o próprio espelho advertia quem passava para o que deviam considerar:

25. ó vós todos que passais pelo caminho, olhai e vede se há outra dor igual à minha (Lm 1,12).

26. Respondamos a uma voz, num só espírito, ao que clama e grita: Vou me lembrar para sempre e minha alma vai desfalecer em mim (Lam 3,20).

27. Tomara que você se inflame cada vez mais no ardor dessa caridade, ó rainha do Rei celeste!

28. Além disso, contemplando suas indizíveis delícias, riquezas e honras perpétuas,

29. proclame, suspirando com tamanho desejo do coração e tanto amor:

30. Arrasta-me atrás de ti! Corramos no odor dos teus bálsamos (Ct 1,3), ó esposo celeste!

31. Vou correr sem desfalecer, até me introduzires na tua adega (Ct 2,4),

32. até que tua esquerda esteja sob a minha cabeça, sua direita me abrace (Ct 2,6) toda feliz, e me dês o beijo mais feliz de tua boca (Ct 1,1).

33. Posta nessa contemplação, lembre-se de sua mãe pobrezinha,

34. sabendo que eu gravei sua feliz recordação de maneira indelével nas tábuas do meu coração (cfr. Pr 3,3; 2Cor 3,3)porque você, para mim, é a mais querida de todas.

35. Que mais? No amor por você, cale-se a língua de carne, fale a língua do espírito.

36. Filha bendita, como a língua do corpo não pode expressar melhor o afeto que tenho por você,

37. peço que aceite com bondade e devoção isto que eu escrevi pela metade, olhando ao menos o carinho materno que me faz arder de caridade todos os dias por você e suas filhas.

38. Minhas filhas também, de modo especial a virgem prudentíssima Inês, minha irmã, recomendam-se no Senhor, quanto podem, a você e suas filhas.

39. Adeus, filha querida, a você e a suas filhas, até o trono de glória do grande Deus (cfr. Tt 2,13). Rezem por nós (cfr. 1Ts 5,25).

40. Pela presente, recomendo quanto posso à sua caridade os portadores desta carta, nossos caríssimos Frei Amado, querido por Deus e pelos homens (cfr. Sir 45,1), e Frei Bonagura. Amém.

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