domingo, 19 de março de 2017

Especial São José - José das poucas palavras.



Frei Hugo D. Baggio

Garimpando no pouco

Quando nos detemos na figura de São José, no primeiro instante, pode parecer uma figura grande, importante, entrosada no plano de Deus, presente no momento augusto da história do homem, quando Deus vem estabelecer sua tenda na terra, tenda que José ajudou a fixar para que os ventos adversos não a derrubassem no primeiro instante de sua fixação. Além disso, São José mora profundamente na devoção do povo de Deus, talvez mais fortemente do que aparece na liturgia e nas fórmulas de louvor com que a Igreja celebra os seus homens ilustres, de cuja seiva se alimenta no decorrer dos séculos, e talvez mesmo além dos próprios tratados teológicos, tão parcos em comentar São José. Muitas igrejas e oratórios lhe são dedicados, muitos locais lhe ostentam o nome, inclusive o mês de março lhe é, de modo particular, consagrado. Muitas pessoas o homenageiam tomando-lhe o nome, fora de dúvida um dos mais populares. Em alguns países sua devoção é promovida de forma mais arrojada, enquanto em outros passa algo despercebida.

No entanto, quando a gente se mete a refletir sobre esta figura ou pretende escrever algo a respeito de sua passagem na história e de sua ação, caímos na realidade e que bem pouco fica recolhido que sirva como fundamento de sua presença e de sua atuação. Pouco a história guardou, como pouco os escritores sagrados dele se ocuparam. Teria ele pouco a fornecer, ou teria sido a presença marcante das duas figuras que, com ele conviveram, de tal magnitude que eclipsou o possível brilho que ele projetou? Porque, de fato, competir com Jesus e Maria é uma empresa de proporções descomunais. Sobretudo quando tanto Jesus quanto Maria, tiveram, no correr da história – e continuam tendo – momentos de particular influência, enquanto a José tal não aconteceu. Jesus, de quando em quando, na história tem seus ensinamentos revisados, seu Evangelho relido, o que aparece como uma redescoberta, como sucede em nossos dias. Com a doutrina, é claro, fica reencontrada e revivificada a figura de Cristo e sua atuação.

Maria, igualmente, teve momentos de exaltação e de ascensão na cotação do povo, fazendo com que sua figura se agigantasse e fizesse aflorar lembranças e dados históricos a ela ligados, levando, inclusive, teólogos a temerem riscos de excessos, como o registrou o Vaticano II. O que não aconteceu com São José, que pouco trabalho deu aos peritos do Concílio. Sua linha de modéstia e ocultamento foi uma constante: desde que apareceu no Evangelho até os nossos dias, pouco foi acontecendo no sentido de reforçar as fundamentações da devoção a São José, ou no sentido de acrescentar reforços aos poucos dados que a tradição havia colecionado. Tudo nele é tímido. Caiu sob a problemática da infância de Jesus, aquele espaço de tempo que a história nada registrou e que a curiosidade, desde os primeiros tempos do cristianismo, tentou preencher através de piedosas lendas, mas sempre lendas, criações movediças para historiadores que reclamam seriedade e documentação.

Todavia, a admiração silenciosa e o culto firmado a São José têm as suas fundamentações, que devem ser como que garimpadas em meio às alternâncias da história e das vicissitudes do Povo de Deus. Sua grandeza aparece suficientemente embasada para que, o monumento que lhe foi erguido, no coração da cristandade, tenha solidez e apoie as conclusões a respeito dele extraídas. Talvez o silêncio que envolve sua personalidade seja exatamente o fascínio que ele exerce sobre as pessoas, sobretudo de religiosidade mais amadurecida. Há pessoas no plano de Deus que são como aquela gota, sem a qual, o copo não transborda, ou seja, a obra não fica completa. Justamente «a gota que faltava» parece algo insignificante pelo fato de ser «gota», mas verdade é que sem ela o plano não maturaria e os grandes projetos não chegariam a bom termo. A arte está em ser somente gota, sem complexos de inferioridade. É semelhante a uma equipe que elabora um minucioso projeto e o leva a bom termo, mas precisa de alguém para acionar o mecanismo, para que o voo fantástico atinja os espaços. É o caso de São José, que, «passa pelo Evangelho sem pronunciar uma única palavra e é forte neste silêncio, silêncio feito de fé, não de temperamento; silêncio de justo, de santo» (J. Mohana).

Tentaremos, pois, nas linhas que se seguem, garimpar a vida de São José e captar o que fez, o que significou e a perene mensagem que traz aos homens de hoje, em tempos em que todas as lideranças humanas estão falhando e, por isso mesmo, se fazem necessárias presenças vigorosas que sirvam de bandeira e guia. Quando os vivos falham com sua missão de condutores, Deus nos oferece os «mortos», que, como nós, enfrentaram as borrascas e encontraram os meios de as superar, sem se deixarem afogar. Assim, plantam-se como carvalhos, em tempos de “homens-alface” …

José, o esposo de Maria

Mateus (1,16), na genealogia de Cristo, diz: «Jacó gerou JOSÉ, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama Cristo». E Lucas (3,23) escreve: «Jesus, ao iniciar seu ministério, tinha cerca de trinta anos, sendo filho, como se suponha, de José, filho de Heli». E antes Lucas dissera (1,26): «Ao sexto mês, foi o Anjo Gabriel enviado, da parte de Deus, a uma cidade da Galileia chamada Nazaré a uma virgem que era NOIVA dum homem da casa de Davi chamado JOSÉ, e o nome da virgem era Maria». Realidade extraordinária, na vida de José, foi seu CASAMENTO com Maria, pois, foi esta a ponte que o transportou para dentro do mistério salvífico de Deus, determinando-lhe o lugar específico que ocuparia dentro do plano de Deus.

Quando nos detemos neste episódio, encontramos uma série de dificuldades para explicitá-lo. Temos diante dos olhos o quadro de Leonardo da Vinci: os esponsais da Virgem, onde um sacerdote abençoa o jovem par, enquanto outros jovens, com cara de decepcionados, quebram varas, pois apenas a de José florira, numa espécie de teste que havia sido proposto para ver quem mereceria a mão da encantadora donzela, dentro dos padrões culturais do tempo, quando a jovem, aos treze anos, e, o jovem por volta dos catorze, tornavam-se aptos para o matrimônio e este era procurado e acertado pelos pais. Quanto a José as opiniões divergem; pois, para uns, ele era jovem; para outros, um senhor já maduro; e, para alguns ainda, até seria um viúvo, como aparece nos Evangelhos apócrifos e mesmo em escritores orientais. Daí, deduzem alguns, os «irmãos> de Jesus seriam filhos do primeiro matrimônio de José (cf. Carlos Cecchelli, Mater Christi, Roma 1948). No ocidente, São Jerônimo derrubou esta hipótese com a afirmação da virgindade perpétua de José que acabou sendo a doutrina da Igreja.

Era ele da mesma estirpe de Maria, na linha de descendência da família real de Davi, sem significar que, na oportunidade, este parentesco lhe desse algum destaque na sociedade, pois a casa de Davi perdera, lentamente, os privilégios e as mordomias que lhe advinham da ilustre ascendência. Nos costumes vigentes na época, entre o «noivado» e o «casamento» permeavam até alguns anos, pois os esponsais judeus compreendiam como duas etapas: o desposório ou noivado e o casamento ou matrimônio. Os primeiros realizavam-se na casa da noiva, mediante uma cerimônia em que o noivo entregava à noiva uma moeda com as palavras: «por este sinal ficas desposada comigo). Equivalia ao nosso matrimônio, pois a noiva recebia o tratamento de esposa, e caso o noivo viesse a falecer, a noiva era tida como viúva e caso houvesse rompimento do compromisso, podia ela pedir uma taxa de compensação, tal qual a esposa. No tocante ao adultério e à fidelidade, funcionava o mesmo rigor. Via de regra, passava-se um ano para o segundo passo: o matrimônio, quando o noivo conduzia a noiva à própria casa, buscando-a na casa dos pais, como o dão a entender as parábolas de Cristo, onde festividades de uma semana selavam a união. Nada sabemos de como foram aproximados José e Maria. Nem tampouco temos dados a respeito das condições que ambos se impuseram para uma vida conjugal em comum, sob o mesmo teto, na aparente normalidade dos matrimônios de todos os tempos. Estamos no campo das conjecturas nascidas da leitura das entrelinhas do pouco que possuímos a respeito.

Em todo o caso, José aparece sempre como o ESPOSO de Maria, como em Lucas 2,5, quando fala da ida a Belém, onde foi José, «a fim de recensear-se com Maria sua ESPOSA, que se achava grávida». Para todos os efeitos também, José, na opinião pública do tempo, era o «pai» de Jesus, como o registra Lucas: «iam seus pais, todos os anos, a Jerusalém, pela festa da Páscoa» (2,41). E pouco mais adiante coloca na boca de Maria: «Olha que teu pai e eu andávamos aflitos à tua procura». Assim, como fica claro, José percorreu todas as etapas legais do tempo para as várias fases entre a promessa e a realização oficial do matrimônio, quando os dois começaram a viver de tal modo que, ante os olhos do público, formavam uma família legal, onde São José não aparecia apenas como um esposo ou pai «faz-de-conta», para defender a honra de Maria contra os rigores da Lei e as más línguas do público, tão afiadas naquele tempo como hoje.

José, pois, como esposo de Maria era o pai legal de Jesus. Daí aparece ele nas genealogias, que entre os hebreus eram formuladas na linha masculina: “A figura do pai legal é equivalente quanto a direitos e obrigações à do verdadeiro pai. Neste fato, fundamenta-se solidamente a doutrina e a devoção ao Santo Patriarca como padroeiro universal da Igreja, visto que foi escolhido para desempenhar uma função muito singular no plano divino da nossa salvação: pela paternidade legal de São José, é Jesus Cristo Messias descendente de Davi” (cf. Bíblia Sagrada, Edições Theologica, Braga 1985, p. 112).

Dos relacionamentos da vida familiar, da partilha dos inícios do matrimônio, dos dolorosos momentos de ansiedade e dúvida, pouco ou nada podemos pescar das fontes apenas entregar-nos a divagações e deduções que, sem dúvida, são válidas para captar algo deste mistério, para idealizar a história de um par que Deus, num determinado momento, atraiu para o centro de seu plano. Os dois, na fé, deram seu SIM e com ele se envolveram numa história luminosa e sangrenta, de cujos benefícios ainda hoje nós colhemos os frutos.

Por isso, o casamento de José é uma fusão da ternura com a fé desafiada e levada à maturidade, fé que o fazia enxergar nas sombras da realidade de envolvente a vontade de Deus, por vezes, dura e escorregadia, lenta em revelar-se, dolorosa quando clara. Esta fé fê-lo o esposo que devia confiar contra todas as evidências, que devia contentar-se com um «sonho» e a voz de um «anjo» como respostas às suas angústias e interrogações, que devia acreditar que o que lhe era pedido fazia parte de um plano total, cuja maturação estava um pouco mais adiante, seguindo uma linha de agir de Deus, que vinha desde seu ancestral Abraão. que devia ver à distância… O fato de haver na vida de José um forte apelo à fé não apaga a realidade da ternura e do carinho. Tenho a impressão de que certas opiniões relativas à sexualidade humana, ou algo contrárias até a esta sexualidade, que vigoraram na Igreja, levaram a considerar este casamento um tanto estranhamente. Qualquer troca de carinho que se tentasse insinuar neste casal apareceria, no mínimo, desrespeitosa e, sem dúvida, ainda hoje levantaria gritas de certos teólogos e algumas autoridades eclesiásticas, de maneira que o casal de Nazaré dificilmente poderá ser apresentado como exemplo aos demais casais, sobretudo para os casais de hoje que buscam relacionamento maduro e sadio, dentro de um matrimônio que é obra de Deus e, portanto, querido por ele. Em alguns momentos a legislação sobre o matrimônio parece torná-lo instituição humana, à mercê das interpretações “legalistas”. O esforço de defender a virgindade de Maria parece que transformou São José num «bom velhinho» que tomou sob sua proteção uma indefesa donzela, chamada para importante missão. Daí, até tentativas de fazer de José também um «concebido sem pecado»…

Está intimamente ligado à função de esposo, o episódio que Mateus narra, em 1,18: “Estando Maria, sua Mãe, desposada com José, antes de morarem juntos, notou-se que tinha concebido por virtude do Espírito Santo. José seu ESPOSO, como era justo e não a queria infamar, resolveu deixá-la secretamente”. Breve trecho que, na sua parcimônia, oculta todo o drama que se apoderou de alguém que agia dentro da justiça de Deus, isto é, que queria ser justo. O hábito de ouvir este trecho já nem nos impressiona mais e nos faz ver e aceitar, como natural, a dramaticidade destas linhas. Aliás, tudo quanto se refere à hagiografia aparece-nos sob o filtro do imaginário popular e, assim, os acontecimentos ficam sendo para o «santo» algo de natural, de simples, de carismático e, consequentemente, não lhe abalam as estruturas, nem o machucam ou fazem sofrer. Coloca-se muito de «mágico» na vida dos santos. Mas é mera ilusão fabricada por um imaginário que teme o sofrimento e distorce os fatos e deforma o mundo do além. Quando os santos, inclusive São José, sofriam as consequências da natureza humana e debatiam-se em dúvidas angustiosas que eles não podiam mitigar pelo fato de pertencerem ao grupo dos chamados de Deus, porque Deus não trata com mais delicadeza os seus escolhidos, como o sabemos muito bem dos ensinamentos da Sagrada Escritura e da vida de alguns santos.

Nossa maneira «piedosa» de considerar Maria recusa-se a aceitar que José tivesse dúvidas a respeito de sua honestidade, quando o dilema crucial dele, foi exatamente a dúvida: como teria ela engravidado!? Embora conhecesse ele muito pouco dos mistérios da biologia e da concepção, sabia, no entanto, o bastante para deduzir que tal fenômeno é colaboração de homem e mulher. E não lhe ocorreria, sem mais nem menos, vislumbrar, aqui, o dedo de Deus. José era “justo” o que em linguagem hebraica, significava piedoso, servidor irrepreensível de Deus, cumpridor da vontade de Deus, e mesmo bom e caritativo com o próximo. Por isso, não passariam por sua cabeça pensamentos de desconfiança. Considerava Maria fora de qualquer suspeita, correta e santa, igualmente, como ele, «justa». Estava, porém, frente a uma realidade inexplicável. Sendo temente à Lei de Deus, sentia-se chamado a repudiá-la. Não conseguindo catalogá-la entre os infames, resolveu-se por uma saída que não prejudicasse o bom nome da esposa: abandoná-la secretamente. Para todos os efeitos passaria ele por um irresponsável que, às vésperas do nascimento do primogênito, deixa tudo e se mete mundo afora. Melhor assim que levar a esposa às barras dos tribunais, que não conheciam apelação, quando se tratava de uma mulher, e cuja sentença, na certa, seria o apedrejamento. Arcaria ele com a carga de infame…

É, nesta hora, que Deus entra em cena, continua o evangelista: “Andando ele com este pensamento, apareceu-lhe, em sonhos, um anjo do Senhor que lhe disse: ‘José, filho de Davi, não temas receber Maria, tua esposa, pois o que nela se gerou é obra do Espírito Santo’… E José, despertando do sono, fez como lhe ordenara o anjo do Senhor e recebeu a sua esposa …” Sem dúvida, no momento da crise, Deus interveio, mas de um modo igualmente, exigente: através de um sonho, vale dizer através de um «sinal». Ora, sinal ou sacramento é um tipo de linguagem que contém em si mesmo algo de misterioso, algo de incompreensível à primeira vista, que reclama uma interpretação, ponderação e adesão da vontade. Bem podemos imaginar a carga de fé que foi exigida àquele homem. E ele suportou a prova, venceu o teste. Ficou firme na sua posição, enfrentou o futuro, e a partir daí entrou em cheio na vida de Cristo e de Maria.

Exige-se uma sensibilidade muito afinada com a vontade de Deus para perceber suas ordens através de sinais. E José o fará muitas vezes, sempre no silêncio. Não no silêncio passivo de quem se dobra ao sinal sem coragem para reagir ou retrucar. Temperamentos há que recusam manifestar-se frente a qualquer situação, seja por comodismo, seja por medo, seja por incapacidade. Mas o de José é o silêncio da fé: viu com os olhos da alma. Percebeu e captou a mensagem. A manifestação que recebeu de fora, foi como que a maturação de algo que se elaborara em seu interior. É a intuição daquilo que a palavra não verbaliza, mas que se transforma como que na tranquila posse da verdade, o suficiente para eliminar os fantasmas da dúvida roedora e serenar as plagas profundas da alma humana. Tais momentos são como que a repetição da chamada de Deus, uma segunda incumbência, um reflorescer da vocação.

Estes momentos atravessados por José demonstram a riqueza da vivência escondida no seu matrimônio. Ele é mais que o encontro de um homem e de uma mulher, na tentativa de juntos trilharem os caminhos da história. É uma comunhão profunda que envolve o homem em todos os seus mecanismos psicológicos e não lhe permite ser mero espectador, mas o atrai para o meio da luta, exigindo tomadas de posição que cansam, desgastam, mas levam ao entendimento do mistério, onde cada um é um, mas mais do que nunca um-para-o-outro. Da postura de José emanariam considerações preciosas para os casais de nossos dias, que transformam as dúvidas e as angústias em ferramentas de guerra e fazem da família um campo de batalha …

José o operário

Quando Jesus visitou sua terra Natal, conforme Mateus (13,53), seus conterrâneos pasmaram de sua sabedoria e se perguntavam: «Não é ele o filho do carpinteiro?» Diziam «do» carpinteiro, indicando que José exercia esta profissão e que pessoalmente era ele conhecido, como tal, daí a presença do artigo «o». E atestavam, além disso, que filho de carpinteiro não era pessoa de cursar universidades e adquirir ciências. Tal, como hoje .. É o único lugar, nos Evangelhos, em que se menciona a profissão de José. Em Marcos (6,3), o próprio Jesus é chamado de carpinteiro. Como Nazaré era uma aldeia de poucos habitantes e de pouquíssima exploração imobiliária, certamente não comportava mais que um marceneiro que, dentro das exigências locais, desempenhava um leque de funções ligadas à utilização do ferro e da madeira, tanto na ordem do mobiliário da casa, quanto na construção e acabamento a própria casa.

Nosso imaginário popular vem povoado das imagens os «santinhos» de nossa infância ou de quadros das igrejas ou familiares, mesmo nos manuais de catecismo, onde a Virgem aparece ocupada com trabalhos manuais de agulha, servida por anjinhos que lhe facilitam a tarefa, enquanto José se ocupa com plainas, machados, serrotes, martelos e madeiras, ajudado pelo Menino que cata cavacos ou modela cruzes com restos de madeira. Tudo dentro de uma atmosfera idílica, que sem dúvida prejudicou a ideia de realismo com que São José teve de enfrentar o dia a dia, na dura realidade de depender exclusivamente do próprio trabalho, sem as alternativas do milagre, ou da intervenção extraordinária de Deus. Devia, além disso, enfrentar as condições do tempo, onde o pagamento não acontecia através da moeda, mas da troca, onde os “bons” judeus haviam introduzido a barganha. Vivia na experiência do que o trabalho lhe rendia, o que o situava na faixa pobre de baixa renda.

Aqui, aliás, a gente deve dar-se conta da naturalidade com que Deus age na vida do homem, mesmo quando o tenha engajado expressamente na sua obra salvífica. Não altera as realidades, no sentido de facilitar a tarefa. Assim quando decidiu que o momento da encarnação estava maduro, escolheu uma família na aparente normalidade dos moldes culturais do momento, sem «inventar» uma nova família com características diferentes. Mesmo a sustentação desta família correu por conta das circunstâncias que compunham o dia a dia de José e de sua esposa que, ao que tudo indica, pertenciam à estirpe de Davi, mas não faziam parte dos privilegiados da realeza, cujas mordomias facilitam tanto a vida e até excluem da servidão ao trabalho.

Portanto, da subordinação ao trabalho, da lei que rege o sustento da vida, nem José se eximiu, ou melhor dito: Deus não poupou o pai adotivo de seu Filho. Como não possuímos dados sobre a tarefa específica exercida por José, não dispomos igualmente de dados que nos explicitem a forma como ele desempenhou esta função. Mas tudo isso parece-me vir condensado na palavra «justo», entendido como aquele que se esforça para estar em tudo afinado com a vontade de Deus. Que procura, dentro de sua realidade cotidiana, realizar o equilíbrio difícil entre a vontade de Deus e aquilo que estamos desafiados a executar, sem lançar mão de subterfúgios ou de falsos misticismos, porque, afinal, mesmo na esfera do relacionamento com Deus corremos riscos de nos iludir ou anestesiar. E a ilusão é péssima companheira do homem que busca a perfeição. E, nesta linha, São José não foi poupado dos cansaços, dos suores, dos desânimos, e mesmo das revoltas. Viveu o trabalho no seu puro realismo, capaz de gerar alegrias, sem deixar de provocar sofrimentos.

Os santos são, por vezes, pintados pelo imaginário popular de forma algo desencarnada, mais perto do «de lá» do que do «de cá», quase neuróticos, de maneira que suas vidas pouco têm de atraente e bastante de repelente. Quando, em verdade, ser santo, por conteúdo do termo, entende-se um homem equilibrado, saudável mental e psicologicamente. Por isso, pensando em São José, imagino-o extremamente saudável e equilibrado e, consequentemente realista, que não alimentava sua fé com ilusões nem mascarava a realidade da vida com pseudo-misticismos, que não passam de fugas ingênuas. Enfrentava a vida de frente. Quanto ao trabalho, encarava-o ele como alternativa natural para construir a história que é confiada a cada homem e cada grupo humano e de alimentar a família que lhe fora entregue. Não via neste trabalho resquícios de castigo, nem achava que a situação de operário o colocava em escala inferior frente às demais profissões. Claro, que a consciência de classe daquela altura da história não se podia comparar à de hoje, como também não se podiam comparar os desvios e as manipulações a que o trabalho foi sujeito no correr da história, mormente em épocas de consumismo e capitalismo. O trabalho não apenas deve ser libertado de uma estrutura ou dos regimes que transformam o homem em escravo e escabelo, mas também deve ser libertado de concepções que o deformam e o apresentam como «carga», sejam quais forem as condições dentro das quais é ele executado. Por vezes fica a impressão de que a luta não é contra as condições adversas do trabalho, mas contra o próprio trabalho. Busca-se a libertação não das estruturas, mas da condição de “homo faber”.

Os documentos eclesiásticos designam José como «exemplar opificum» – «modelo dos operários», não visando simplesmente um sujeite passivo do trabalho, fatalisticamente preso a ele, que aguarda a solução dos sofrimentos do trabalho para os tempos escatológicos, mas como aquele que, apesar da situação histórica, tem uma visão teológica do trabalho, isto é, discerne Deus no seu trabalho, como o expôs João Paulo II, na sua Encíclica Laborem exercens.

Bem podemos imaginar São José como o homem que descobriu o mistério alimentador do trabalho, mesmo fatigante e esmagador: a razão familiar. Trabalhar para ele era arrancar do suor, das horas pesadas, da dura madeira, do ingrato labor, o pão com que alimentava sua bela esposa e o filho querido. Nada era desmesuradamente pesado, se no final de penosa jornada, podia fornecer a humilde dispensa de sua casinha, também humilde, em tudo igualzinha às demais daquele aglomerado de Nazaré, que mal merecia o nome de rua. Sem uma razão sólida que inflame o coração, a energia desprende-se das mãos e a inspiração foge da imaginação. Se o operário, ele mesmo, se coloca como razão de seu trabalho, terá pouca resistência e menor perseverança e nenhuma capacidade de enfrentar os reveses ocultos no bojo da dura missão de operário, que expressa subordinação e escassas compensações materiais. É o que me levam a pensar esses homens que, de marmita na mão, passam uma parte do dia apinhados num trem da Central e outra parte mourejando em fábricas ou ao ar livre, mal alimentados e pior remunerados: se neles não palpitasse a necessidade carinhosa de alimentar uma família, se não tivessem diante dos olhos a imagem da mulher grávida frente ao barraco e dos filhos nus e barrigudos de fome, não teriam uma sujeição que dura anos… Toda tarefa deve enraizar-se numa ideia carinhosa e tenra. Só assim o trabalho participa da ternura salvadora. Sem dúvida, fica difícil fazer aflorar o amor nesta trevosa realidade, como é difícil descobrir estrelas numa noite de tempestade. Mas tanto o amor quanto as estreIas existem sempre. E não é porque não aparecem que as estrelas e amor não existem. O importante é que existem dentro de mim.

Não precisamos, pois, fabricar artificialmente argumentos para imaginar José na fidelidade alegre de seu trabalho: ele amava. E amava profundamente com todas as veras da alma, porque possuía ternura e recebia ternura de Maria. Os dois não passavam o tempo todo discutindo temas teológicos ou lendo a Bíblia, fazendo aproximações entre o Antigo e o Novo Testamento, pois não sabiam estar no «Novo». Sabiam que Deus os amava e eles se amavam ternamente, pois, também para a durabilidade do matrimônio de José e Maria se fazia necessário o amor. Não viveram na aparência de querer-se bem. Não foram unidos pelo «milagre», mas pelo amor. E o Menino que ali estava era a fonte renovadora e inspiradora deste amor. Cada um deles devia dar a sua colaboração amorosa e compreensiva. Também para eles havia renúncias.

Um casamento como o deles corre o risco de ser encarado dentro de uma aura sobrenatural tal, que, no concreto, não passaria de um «arranjo» de Deus, para emprestar validade e salvar aparências. José e Maria seriam dois «atores» e nada mais. No entanto, eram marido e mulher, um homem e uma mulher e, embora celibatários, tinham sua sexualidade e dentro da realidade em que Deus os havia colocado deviam construir o seu matrimônio. Embora não tivessem trocas sexuais, tinham expressões de carinho alimentadoras da vida a dois. Suas renúncias tinham motivações profundas, por isso não viviam frustrados, podendo, pois, servir de exemplo tanto para os que optam pela vida em matrimônio, como para os que escolhem a vida na virgindade consagrada.

Tudo se lhes tornara generosidade. Onde há generosidade, não há revolta. Assoma a gratuidade. Com ela nasce a confiança. Encontra-se o mistério de Deus. Não é possível entender tudo. Menos ainda verbalizar tudo. Mas tudo pode ser vivenciado. José, porém, entendia o bastante para sentir a paz interior. E paz interior é paz consigo mesmo, com sua realidade existencial. Quando dizemos que José era humilde, sem ambições, que não buscava lucros nem sonhava fortunas, dizemo-lo um homem pacificado. O mesmo se afirme em relação ao trabalho. Sua atitude não deve ser confundida com uma aprovação tácita, silenciosa, da realidade obreira do tempo, afastada do plano do Criador, nem ignorância da situação vigente, como se ele pairasse em atmosfera mística superior, nem um cômodo pacto com as injustiças gritantes, por ele viver já na escatologia. De sua parte, descobrira-se operário de Deus, portanto, engajado em uma obra de proporções tais que não tinha seu término marcado para o fim do dia, da semana, da estação ou do ano, mas em uma obra que vinha do fundo dos séculos e caminhava para o futuro sem limites, cuja duração se ocultava nos arcanos do Pai. Esta obra reclamava a colaboração humana e não raro, arrancava suor e lágrimas, vida e sangue, angústias e questionamentos. Entre as funções contidas na missão de zelar pelo Filho de Maria e de Deus, estava o trabalho que, como a função geradora de Maria, se tornava imprescindível, para que o plano maturasse em plena apoteose. No momento em que José entendeu que «o que acontecia em Maria era obra de Deus», tudo o mais ficou iluminado por esta compreensão, nascendo daí a fidelidade ao seu trabalho, mesmo no seu aspecto braçal. E captava toda a honra que tal trabalho significava. Não procurou passar por «empresário» de Deus, pois, não via nisso maior honra que «operário» de Deus.

Como conhecia determinadas técnicas para amaciar a madeira e torná-la dócil aos movimentos das ferramentas e de suas mãos, assim José encontrou profundas motivações que o faziam feliz e realizado em seu trabalho, evitando amargar a realidade com a revolta e a crítica azeda, o inconformismo e os sonhos de vidas diferentes. Tinha, pois, uma consciência correta do que significava ser «operário». Justo é o que tenta harmonizar sua vida e seu agir com o plano de Deus que intuiu na fé.


Espectador do mistério

A vida de José vem marcada pelo mistério. Desde que Deus decretara o fim da espera e optara pela realização da promessa, José esteve presente. Foi mesmo atraído para o centro do mistério, como para dentro de um turbilhão. Acabou seu sossego. A ordem do Senhor expressa no imperativo LEVANTA-TE começa a se tornar-lhe familiar, com os deslocamentos e penas que lhe são característicos. O tufão apanhou o jovem casal e o Filho e os fez experimentar as intempéries próprias a todos os viventes da faixa pobre, sem mitigação e sem considerações, lembrando sempre: não poupou seu próprio Filho.

A anunciação trouxe a José noites de vigília e de sofrimento profundo, quando sua crença inabalável na honestidade da esposa media forças com uma realidade brutal que enchia os olhos e alimentava a dúvida, até que a intervenção de Deus terminou por sossegá-lo, evitando uma decisão precipitada que o teria afastado de outros lances em que Deus contava com ele. A fuga, que tantas vezes se apresenta como alternativa ao homem, tocou a José, com seu convite manso, como acontecera com Jonas ou com Elias.

Quando da visita a Isabel não nos consta tenha ele acompanhado a esposa, ainda que mais uma vez nosso imaginário popular tente ajudar, através dos artistas que pintam as duas mulheres absortas no sublime diálogo dos mistérios que elas traziam em seu seio, enquanto dois senhores, José e Zacarias, assistem silenciosamente, à distância. Terá Maria guardado silêncio como na ocasião da gravidez, ou teriam, em diálogos, trocado ideias e partilhado dos segredos das montanhas de Hebron? Ou teriam os dois vivido paralelamente as experiências sem uma partilha integrativa? Somos pela partilha mais do que pelo silêncio …

No episódio do nascimento, o próprio Evangelista colocou José tomando as providências e participando ativamente na solução dos problemas humanos criados pelas circunstâncias. Como cabeça da família cabia-lhe organizar a viagem a Belém, para o alistamento ordenado por César Augusto e ali foi colhido por mais um turbilhão de angústias com a procura da hospedagem que, seja por lotação de peregrinos, seja pela dureza dos corações, lhes foi negada, no crucial momento logo antes do parto. Apesar da bondade de Deus, sempre junto aos seus amados, bem podemos imaginar o desespero de José, que foi tomando corpo, à medida que aumentavam as negativas e diminuíam as probabilidades, ameaçando-os com um relento doloroso. Tudo para ele se tornava complicado, desde os preços proibitivos para uma noite de albergue até a aquisição das coisas mais indispensáveis. Outra vez o imaginário popular encheu nossas cabeças com luz, estrelas, anjos cantantes, ocultando toda uma realidade dolorosa onde José sentiu sua fé, mais uma vez, provada, tentando ver onde o caminho de Deus se paralelizava com o dos homens, pois para ele, naquele momento, havia milhares de perguntas fervilhando na alma, como as multidões de estrelas que brilhavam no céu. Para os pastores, os anjos ofereceram como «sinal» um Menino envolto em panos, e para José qual teria sido o sinal?

Sem dúvida, estava ele consciente de se encontrar frente ao mistério, que é o modo singular do agir de Deus. Mas estava igualmente consciente de que devia fazer gestos concretos. Não podia contentar-se em ficar em comovida contemplação frente àquele Menino, rememorando como Deus o havia feito participante daquele mistério. Cabia a ele a responsabilidade de ajudar o Menino a crescer, em todas as dimensões, pois, afinal, os laços que entre os dois haviam sido estabelecidos, como resultado do chamado de Deus, não eram simples «aparências», mas responsabilidade histórica. Deveria colocar-se todo inteiro a serviço desta missão. Podia não «ser» o pai, mas ele sentia-se, pai até as profundezas de seu ser e não simples espectador da maternidade de sua esposa. E não iriam tardar os chamados de Deus que comprovariam que Deus também pensava assim: havia dado a seu Filho um PAI terreno.

É interessante notar quanto Deus pode exigir de um homem que se deixou atrair para o centro do mistério, levando-o a caminhar à luz da fé em meio a mil acontecimentos que abalam programas e desmontam perspectivas, exigindo uma atenção constante para perceber de onde sopra o vento, obrigando a dizer «amém» ou dizer «sim», mesmo quando, ou principalmente, os motivos de Deus não aparecem claros ou até contraditórios, na repetição do pedido feito a Abraão para que sacrificasse o filho da promessa. Caminhar à luz de Deus, nestas horas, reclama um homem formado na escola de Deus, do recolhimento e da reflexão que fortalecem o interior do homem e o tornam forte frente às contradições, verdadeiras ou aparentes. Aqui, entende-se um pouco mais o silêncio de José: precisava dele para fortificar-se. Para reintegrar-se. O Evangelho diz que Maria guardava as palavras e as meditava em seu coração, identicamente deveria acontecer com José que ia recolhendo os sinais de Deus, a concreção da gratuidade de Deus, na forma de um Menino que fora entregue aos seus cuidados. E aquela espada de dor que o velho Simeão profetizara para a Mãe, como dolorosa perspectiva de horizontes sangrentos, atingiria também o coração do pai. Também no sofrimento cabia-lhe partilhar com a esposa.

Certo, terá sua caminhada cortada antes de chegar ao Calvário, não precisando ficar de pé junto à Cruz. Mas no trecho de caminhada que lhe coube como companheiro de Cristo, deu sua colaboração também no aspecto do sofrimento, numa participação sempre mais consciente e livre, sem condicionamentos ou medos do além. Também ele misturou seu sangue com o sacrifício salvífico, porque todos aqueles que são colocados em sociedade com Cristo salvador devem partilhar de seu sofrimento, sem o qual não há redenção. Deus não convida espectadores festivos ou caravanas de comícios para aplaudir. Quer homens de comunhão. Porque só existe responsabilidade na liberdade. Por isso, não podemos interpretar o silêncio de José como um oásis fornecedor de sombras e de melodias interiores apenas, mas como um laboratório onde purificava suas dúvidas, amansava suas revoltas, retemperava suas motivações e recriava sua disposição de discernir a vontade de Deus nestes «sinais» tão dispares por vezes. Assim, a vida com suas brutalidades não lhe desintegrava a vida interior, mas fazia de José um «contemplativo» no sentido mais puro e concreto do termo. Era o homem que «via» além das aparências, chegando à raiz das realidades, criando aquele espaço onde podia dialogar com Deus. Por isso, São Bernardo escreve: «O Senhor encontrou José segundo o seu coração e confiou-lhe, com plena segurança, o mais misterioso e sagrado segredo de sua sabedoria, concedendo-lhe conhecer o mistério, desconhecido a todos os princípes deste mundo».

Se aos Apóstolos Cristo dizia: «a vós foi dado conhecer os mistérios do Reino», quanto mais concedeu esta ventura a José, companheiro de longos anos, mestre do entalhe, exemplo vivo de homem de Deus, participante da intimidade do lar, numa afinação maravilhosa de pai e filho. Por isso, São José é o espectador e colaborador privilegiado que vê e participa, que vibra e sofre, que vive e encarna o mistério da vida do Salvador e com o Salvador e a exemplo dele «cresce em estatura, sabedoria e graça diante de Deus e dos homens» (Lc 2,52), até que amparado por Jesus e Maria faz sua passagem para a casa do Pai, para o reino do não-mistério…

Desterrado com Deus

Dentre as horas angustiosas que ensombraram a vida de São José, sem dúvida, figuram aquelas que cercavam a fuga para o Egito. Depois da visita dos Magos, «eis que um anjo do Senhor apareceu, em sonhos, a José e diz-lhe: levanta-te, toma o Menino e sua Mãe e foge para o Egito, e fica lá, até eu te avisar, porque Herodes vai procurar o Menino para o matar» (Mt 2,13). Uma ordem em todos os sentidos desafiadora e estonteante. Coloca um homem frente a um tremendo claro-escuro: afinal, o que é que Deus está querendo? Quando os problemas que haviam envolvido o nascimento do Menino pareciam terminados, eis que Deus abre novo filão de problemas. Realmente, o sossego do carpinteiro estava definitivamente comprometido.

Ordem é ordem, diria um bom servo. Mateus continua: «levantou-se, tomou de noite o Menino e sua Mãe e retirou-se para o Egito» (2,14). Secamente descrito o passo, em sua casca exterior, fica, então, ao leitor a pesca dos sentimentos neste lago de águas claro-escuras, por onde se movimenta a vontade de Deus. São José é submetido a dois violentos deslocamentos: o geográfico e o psicológico. Geograficamente, afinal, o Egito não era aí nos arredores de Belém, onde a família se encontrava, nem nas fronteiras próximas de Israel. Havia todo um espaço ouriçado de riscos e perigos e ameaças, verdadeiros e imaginários, pois fora o caminho percorrido pelo povo escolhido, quando da marcha da libertação do Egito, e desta aventura pelos desertos, muita lenda foi criada, com seus monstros e gigantes, enchendo de terror a mente dos judeus. José deveria refazer, ao inverso, o caminho dos antepassados. Deveria enfrentar um povo estranho e fazer a dolorosa experiência do «estrangeiro», que José conhecia da recitação dos Salmos, num país sem o Templo, de língua estranha, de sobrevivência duvidosa.

Junto às dificuldades nascidas dos deslocamentos por aquelas estradas vinham as angústias interiores na perspectiva de dias sombrios, de penúria material, de relacionamentos dificultosos, de trabalhos mal remunerados, sem lembrar o espetro da fome e da marginalização. Deixar Nazaré, a terra natal, as poucas, mas sempre existentes garantias, significava o esvaziamento total. Deus estava exigindo até o fim a entrega do homem, sem reservar para si nem a paz interior. A limpeza da alma passa pelo abandono das coisas mais queridas.

A fuga para o Egito prefigurou, através dos tempos, a procissão dos sem-terra, dos sem-pátria, dos sem-direitos, arrastados pelos acontecimentos, pelos racismos, pelas discriminações, pelas guerras, pelas injustiças, pelo poderio ganancioso, pelos deuses sentados em tronos esmagando pequenos, ao toque de tambores, ao troar de canhões, à força de decretos expropriatórios, de conchavos de partidos todo-poderosos, de falsas alegações de segurança nacional. Fez, pois, a Sagrada Família a experiência do retirante, do exilado, do migrante, do nordestino deslocado. Nessa dura prova, teve José de manter-se firme, pois cabia a ele tomar decisões, traçar rumos, resolver problemas, arcar com as responsabilidades, rasgar escuridões, enfim, fazer as vezes do Pai mesmo dentro do túnel da dúvida.

À semelhança dos místicos, atravessou ele a «noite escura», onde a lua da fé devia espancar as trevas da dúvida, da angústia, da estupefação, do silêncio da realidade e de Deus, numa perigosa vizinhança com o desespero e a revolta. Interessante que José recebia suas mensagens sempre à noite, como que significando a noite que, por vezes, lhe envolvia a alma, quando tentava decifrar os pianos de Deus. Sem dúvida, estava ele na companhia de Jesus e de Maria. Que melhor companhia! Mesmo assim bebeu o cálice da amargura, do medo do amanhã, das horas sem eco. Falaria com a esposa dos sentimentos que lhe turbilhonavam na alma? Receberia dela a palavra tranquilizadora da confiança total no Pai? Creio que sim. Creio que a certeza de estar em tão sublime companhia deve ter derramado na alma ondas de consolação e de fortalecimento, ajudando-o a erguer-se, a caminhar, a acreditar, a amar sua missão. Como diz São João Crisóstomo: “É bem verdade que Deus, amigo dos homens, misturava trabalhos e doçuras forma de agir que emprega com todos os santos. Nem perigos, nem consolações ele no-los dá ininterruptamente, mas com uns e com outros vai entretecendo a vida dos justos. Assim fez com José”.

Pode-se, pois, embora com poucos dados, concluir que a vida de São José foi tecida por uma mistura de alegrias e consolações, de sobressaltos e tormentos profundos, levando-o a viver todo o místico ensinamento e o dinamismo dos Salmos, que como bom judeu conhecia e recitava constantemente, a exemplo de seu ancestral Davi que estivera em encruzilhadas semelhantes e experimentara o sofrimento como uma cárie que lhe ia devorando os ossos. Viveu a «proximidade física» de Deus e os percalços que o iam despojando das seguranças terrenas e limpavam os espaços interiores, que iam sendo ocupados por Deus. Talvez, não tivesse ele palavras para as expressar, mas o fato é que estava fazendo a mais bela experiência de Deus, que os séculos posteriores, a partir dos desertos até os nossos dias nas pequenas comunidade que vão nascendo, tentariam tematizar e viver…

Por fim

Peregrino andante, desterrado com Deus, companheiro de Jesus e de Maria pelos caminhos da diáspora, família de Deus sem-terra e sem-teto, alma grande que não se entregou ao desespero nem se rendeu à descrença, procissão luminosa a iluminar os horizontes do homem peregrino e desterrado, exemplo vivo do pôr-se-a-serviço e do deixar-se-arrastar pelos caminhos do século, cooperador da salvação, gota de suor e sangue a completar o cálice do Senhor, homem das longas caminhadas que, afinal, um dia, com Jesus de um lado e Maria do outro, atendeu ao último chamado de LEVANTA-TE e VEM, para entrar na glória do Pai e colocar-se como o inspirador da passagem temida, mas querida, de voar para junto daquele que preparou uma apoteose para os carpinteiros de todos os tempos que o ajudaram a CONSTRUIR O REINO SALVADOR…

Esse texto foi publicado na Revista “Grande Sinal”, da Província Franciscana da Imaculada Conceição, editada pela Editora Vozes.

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