Desde nossa infância, sobretudo contemplando o presépio no tempo do Natal, aprendemos a venerar São José, esposo de Maria, pai nutrício do Filho de Deus. Em seu ambiente, Jesus era conhecido como “filho do carpinteiro”. Karl Rahner, grande teólogo jesuíta do século passado, tem uma bela reflexão sobre José. Dela nos inspiramos para redigir este texto (L’homme au miroir de l’année chrétienne, Mame, Paris 1966, p. 117-125).
Quando celebramos a memória dos santos temos sempre, como pano de fundo, a realidade da comunhão dos santos. Deus não é um Deus dos mortos, mas dos vivos. Quem morre na graça de Deus, vive junto de Deus e, concomitantemente, perto de nós. Os habitantes do céu, celebrando a liturgia celeste, intercedem por seus irmãos da terra. Os santos são nossos precursores e representam de maneira viva nosso futuro. Eles veem ao nosso encontro na medida em que nossa vida mortal vai se tingindo das cores da eternidade.
Os santos no céu conservam sua personalidade
Esses homens e essas mulheres que chegaram à bem-aventurança, à sociedade a que já pertencemos pela comunhão dos santos, não são pálidas sombras. Levaram com eles, para a vida eterna de Deus, o que foi sua vida terrestre, o que dá a cada um deles um semblante único. No hoje eterno, Deus continua a chamá-los por seu nome. Continuam sendo o que foram no termo de sua caminhada pessoal e singular. Todas as vezes que celebramos a festa de um determinado santo, invocando-o como protetor e intercessor celeste, ele representa aos nossos olhos um valor único e insubstituível com o modo original de santidade que realizou. Sentimo-nos ligados a ele porque o escolhemos devido a um “parentesco” especial. Pedimos sua assistência e nos comprometemos com seu jeito de ser santo. São garantias que apresentamos para gozar de sua assistência.
Rahner faz alusão bem prática ao povo de habitantes das montanhas ao qual esse dirige o texto que, antes de ser publicado, provavelmente era homilia. “Como não ver uma afinidade entre São José, esposo da Virgem Maria e pai nutrício de nosso Senhor e a população alpina que me escuta? Ouso dizer que esta população somente realizará seu destino seguindo as pegadas daquele que escolheram como patrono celeste, o carpinteiro de Nazaré. Qual é a vocação providencial deste povo, vocação a que deve permanecer fiel? Certamente a de trabalhar nestas terras pouco férteis com o suor da fronte, no cumprimento da palavra, praticando a fidelidade e a retidão sem desvios”. Todos os fiéis e todos os povos cristãos são chamados a viver a fé cristã em sua plenitude. Uma tal tarefa nunca está completa. Podemos, isto sim, atingi-la atravessando muitas portas e percorrendo variegados caminhos. Não temos como nosso o grande portal das comemorações ruidosas e entusiasmadas. A humilde porta da fidelidade silenciosa, o cumprimento modesto e exato do dever haverão de nos abrir os horizontes incomensuráveis do mundo de Deus.
A santidade terrena de São José
As Escrituras pouco nos falam de São José, o necessário, porém, para que nos inteiremos do essencial. Não se conservou uma só palavra do santo. Falou tão pouco que se chegou a pensar desnecessário transmitir o que ele tinha proferido. Sabemos que era originário da ilustre raça do rei Davi que domina toda a história nacional de seu povo. Essas origens tão grandiosas colocaram em realce o caráter modesto e pouco brilhante do santo: a vida dura de um carpinteiro num “buraco” perdido no mapa do mundo… e seus impostos e sua administração. Chegou ele até a experimentar a sorte de pessoas que devem fugir de sua terra e, com dificuldade, buscar abrigo no exterior. Deve ter intensamente amado sua terra já que não quis se fixar nos arredores da capital, preferindo a vida no interior. Depois disso apenas a vida obscura, desapercebida, na aldeia de Nazaré. A vida de família, eis um pano de fundo bem pouco solene para a entrada em cena de Jesus.
A vida corriqueira deste homem apagado escondia, no entanto, sob insignificantes aparências, riquezas espirituais de alto preço.
Antes de tudo o silencioso cumprimento do dever. Por três vezes a Escritura diz que “ele se levantou”. Para fazer o quê? Para colocar em prática o que havia percebido em sua consciência como sendo a voz de Deus. Sua consciência estava tão desperta que durante o sono ela comunicou a mensagem do anjo por mais estranhos que lhe parecessem os caminhos que ele devia percorrer.
O outro tesouro que a Escritura nos atesta entrar presente na alma de José é a justiça. José era um “justo” e esta expressão designa, na linguagem da Escritura, o homem que coloca sua vida sob a luz da palavra e da lei de Deus. Justo não somente quando a palavra acompanhava e realizava os desejos humanos, mas em todas as circunstâncias mesmo quando custasse, mesmo quando o próximo tivesse vantagem em detrimento de seus próprios direitos. José possuía essa justiça que significa cuidado pela ordem das coisas, delicadeza e respeito para com a personalidade do outro, por mais desconcertante que esta pudesse ser.
Esta fidelidade ao dever e à justiça respeitosa diante do real, dupla característica do amor no mundo masculino, José haveria de testemunhar com relação ao Deus de seus pais. Era um homem piedoso e tinha uma piedade de homem, uma piedade distante de todo sentimentalismo inconstante, uma humilde fidelidade unicamente preocupada com Deus e não consigo mesmo precisamente para, desta forma, forjar uma “alma piedosa”. “Cada ano, nos diz o Evangelho, subia a Jerusalém, segundo o costume, para a festa da Páscoa” (Lc 2,41-42).
Assim foi o homem e sua vida cotidiana sob o tríplice signo do dever, da justiça e da piedade viril. Somente após as considerações feitas sobre estas três riquezas é que podemos falar da maior de todas: o papel tutelar e paterno que Deus dignou lhe confiar para com aquele que é a salvação do mundo, Jesus. Acolheu em sua família quem veio resgatar o povo de seus pecados, o Santo de Deus. José teve o privilégio de lhe conferir o nome: Jesus, quer dizer, “Deus salva”. É no silêncio e na fidelidade que ele cumpre sua tarefa de servidor da Palavra eterna do Pai que se tornou uma criança desse pobre mundo. Os homens, por sua vez, o designaram de seu Salvador, o “ filho do carpinteiro” (Mt 13,55). Quando a Palavra eterna do Pai, começou, através da pregação do Evangelho, a ressoar no meio dos homens, José saiu da cena deste mundo como alguém que havia terminado de desempenhar um papel pouco importante e que quase ninguém percebeu. A vida desse homem, no entanto, teve um conteúdo, o único que conta numa existência: Deus e sua graça que se fez carne. A José se podia aplicar o final da parábola evangélica: “Servo bom e fiel entra na alegria de teu Senhor” (Mt 25,21).
Uma santidade ao alcance de todos
Não escolhemos bem como nosso padroeiro este homem cuja vida se desenrolou sob o signo da cotidianidade banal, do dever silenciosamente realizado, da escrupulosa preocupação de acercar-se de coisas e pessoas de acordo com sua natureza, pessoa de piedade viril? Este homem que teve a graça de zelar pelo próprio corpo da graça de Deus?
Um povo necessita de figuras de proa nas coisas do espírito e da vida pública. José foi um desses guias capazes de apontar para novos objetivos, desses homens audaciosos e pioneiros. Ora, tais lideranças deverão ser de homens e de mulheres com suas vidas orientadas para o cumprimento do dever, sob o signo da fidelidade humilde e da disciplina do corpo e do espírito, pessoas convencidas de que só se alcança a verdadeira grandeza quando se olha para além de seu próprio horizonte e se entrega sem reserva à vocação santa que representa toda a existência, pessoas animadas de verdadeiro temor de Deus, vitoriosas sobre si mesmas, à escuta da Palavra divina, executoras escrupulosas dos oráculos inquebrantáveis de sua consciência; pessoas que por toda a sua vida mostram abertamente a graça de Deus, desarmadas como uma criança, diante dos novos Herodes que odeiam a graça de modo especial estampada no roso da Criança; pessoas que a graça de Deus nunca desconcerta, mesmo que se precise procurá-la em vão como foi o caso de José em sua busca angustiante da Criança divina. Tais homens deveriam existir em todas as partes. Podem existir e são terrivelmente necessários, nas mais diferentes condições e situações.
O patrocínio de São José
Este é padroeiro que admiravelmente nos convinha. E que convém a todos. Ele é o patrono dos pobres, dos trabalhadores e dos exilados, modelo da oração e santa disciplina do coração; modelo dos pais de família, porque através de seus filhos é o Filho do Pai eterno que lhes é confiado. Os moribundos, por sua vez, podem recorrer à sua proteção, ele que teve à sua cabeceira aquele que conheceu nossa morte e a aceitou por nós. Nossos antepassados fizeram boa escolha quando nos colocaram sob a proteção de São José. Permanecemos dignos desta tradição que nos foi legada? Que fizemos para conservar e intensificar este parentesco?
São José está bem vivo, bem perto de nós no mistério da comunhão dos santos. Tiremos de nossa cabeça a ideia de que os santos seriam como que devorados pelo brilho ofuscante da luz eterna de Deus na qual penetraram, ou devorados na torrente que toma conta deles incessantemente ganhando distância dos séculos passados. Deus não é Deus dos mortos, mas o Deus dos vivos; daqueles que longe de viverem de maneira neutra sua vida eterna conservaram da existência terrena sua substância profunda que os define para sempre e que o integraram na fonte real da vida onde ela se alimenta, isto é, a fonte dos séculos a virem. Assim devemos conceber a maneira como vive São José. Ele é nosso padroeiro. Não experimentaremos o benefício de sua proteção, sendo protegidos pela graça divina, se permitirmos que nosso coração e nosso espírito venham a se abrir ao seu espírito e ao poder silencioso de sua intercessão.
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